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A farra do boi é uma vaca sagrada? Uma reflexão iniciada na UFSC

9 de março de 2009
Paula Brügger
5 min. de leitura
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Entrei na Apufsc para tomar um café e constatei que um cartaz contra a “farra do boi” afixado por mim, uns dias antes, estava amassado e colocado num lugar diferente daquele que eu havia posto. Soube depois, por outros colegas, que a maioria dos cartazes contra a “farra”, colocados por eles em outros lugares, também haviam sido arrancados.

Há quase três anos, no encerramento do V Congresso Ibero-Americano de Educação Ambiental em Joinville, que contou com mais de quatro mil participantes, foi aprovada uma moção contra a “farra do boi” – e demais formas de tauromaquia – por se considerar que “a educação ambiental deve construir uma nova racionalidade fundamentada, entre outras questões, em valores que rejeitem o antropocentrismo, o especismo, o racismo, o sexismo, o imperialismo e outras formas de exercer domínio sobre o outro”. Na moção menciona-se também o fato de Barcelona já ter se declarado cidade antitaurina. Ao retornar do congresso, entrei em contato por e-mail com o NPD** para pedir que divulgassem na UFSC a moção encaminhada pelo MMA (Ministério do Meio Ambiente), mas meu pedido foi negado. Alegou-se que a divulgação da moção geraria muitas animosidades, já que alguns professores seriam a favor da “farra”. Tudo bem, talvez o NPD não seja um veículo apropriado. Mas se há diferentes pontos de vista, por que não os discutir?

No nosso, a “farra do boi” é uma prática especista, covarde e violenta, que inflige sofrimento físico e psicológico a seres sencientes, isto é, aqueles capazes de experimentar emoções e ter sentimentos como raiva, alegria ou medo, por exemplo. Embora proibida por meio de Recurso Extraordinário, por força de acórdão do STF, na Ação Civil Pública de nº 023.89.030082-0, e prevista como crime pela Lei 9605/98, alguns setores da sociedade catarinense defendem a manutenção dessa prática como parte de uma tradição cultural. Entre eles estão alguns políticos. Eles promovem a “farra” presenteando bois em troca de votos. Tais políticos são, em geral, os mesmos que votam pelo aumento de passagens, pela ocupação urbana desenfreada, pela destruição do meio ambiente etc.

A “farra” também tem seus defensores na comunidade acadêmica. Alguns professores universitários, sobretudo das áreas de Antropologia e História, defendem publicamente a “farra do boi”. Tal postura, além de um tanto paternalista e demagógica, em alguns casos, expressa uma visão de mundo reducionista, pois não veem seus defensores que estão justificando tal prática tomando como parâmetro o paradigma especista e antropocêntrico que domina nossa cultura e, é claro, suas áreas de conhecimento. Nessa visão de mundo hegemônica, fortemente marcada por uma racionalidade instrumental, a natureza é vista como uma grande fábrica, como um mero conjunto de recursos (ou seja, meios para se atingir um fim) e isso inclui, é claro, os animais (inclusive os humanos, oprimidos). Os animais são considerados, então, destituídos de valor intrínseco: não são sujeitos de suas vidas, não fazem parte da comunidade moral, são meros instrumentos ou objetos para uso humano. Imersos nesse paradigma – responsável pela destruição das condições de vida no planeta – não veem seus defensores que essa é apenas uma visão de mundo, uma razão, entre tantas outras. E o problema da razão é que por meio dela é possível justificar qualquer coisa, menos o seu próprio fundamento. A ciência deve questionar seus pressupostos filosóficos, rever suas “verdades” e redefinir as metáforas sobre as quais ergue seu corpo de conhecimento. Caso contrário, não será ciência, mas fundamentalismo. E a educação – alicerçada em tais visões estreitas – não será educação, mas adestramento.

Panis et circensis! Precisamos de qualquer cultura? A “farra do boi” é uma prática moralmente indefensável que estimula a violência e a covardia, e sequer os animais que a multidão ensandecida persegue, açoita, mutila e mata, são os chamados “bois bravios”. Mesmo quando não é severamente ferido, como ocorre na esmagadora maioria dos casos, o pobre animal, em sofrimento psicológico, tenta fugir e acaba morrendo seja afogado, seja por queda em despenhadeiro, ou abatido a tiros pela polícia. Além disso, há inúmeros casos de perdas de vidas humanas (farristas e não farristas), destruição de patrimônio etc. A “farra” é, enfim, um grande “circo” cuja energia despendida por aqueles que dela participam poderia ser canalizada para a reivindicação de direitos, expressões artísticas etc. Defender a cultura é promover a educação e o pensamento crítico, e não “pão e circo”. Há inúmeros ilhéus e catarinenses descendentes de açorianos que consideram a farra uma prática execrável. Não existe, portanto, a dicotomia “os daqui, que defendem” versus “os de fora, que querem acabar com a cultura açoriana” (sic). Defendemos uma cultura compassiva, lembrando que a compaixão é a capacidade de se colocar no lugar de quem sofre. Apoiariam os defensores da farra, com igual isenção, uma tradição cultural na qual seriam aprisionados por algum povo canibal para lhes servirem de refeição? Vale a máxima: “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. Manifestações culturais envolvendo sofrimento sempre existiram. E sempre houve quem as defendesse. A manutenção de manifestações culturais desprovidas de preocupações de ordem ética não nos ajudará, entretanto, a construir um mundo melhor.

Devemos admitir, finalmente, que estamos numa democracia e, em se tratando da comunidade universitária – fórum privilegiado para o debate de ideias – é muito razoável pedir aos defensores da “farra” que exponham os argumentos que tornam moralmente defensável uma forma de diversão que ocorre às custas do sofrimento alheio. E, ainda, em que medida as mencionadas metáforas antropocêntricas, extemporâneas, são mais importantes do que valores concretos como compaixão, respeito às alteridades e não-violência. Creiam, o sofrimento das pobres bestas subjugadas – e o de quem sofre com elas – é insuportável.

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