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Eu sou George, muito prazer!

16 de janeiro de 2009
4 min. de leitura
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Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA
Uma lagosta cuja idade foi estimada em 140 anos foi retirada de seu aquário em um restaurante de frutos do mar em Nova York e seria solta no mar da costa de Maine, onde a pesca de lagosta é proibida. O grupo de defesa dos direitos dos animais Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais) organizou uma campanha pedindo a libertação da lagosta. Ingrid Newkirk, do Peta, elogiou a decisão do restaurante.
Eu sou  George, muito prazer!
Esta voz grave e rouca que você ouve não é resultado de um fumante inveterado, não. Nunca fumei na minha minha vida e olhe que ela é longa, viu?! Sabe qual minha idade? Não arrisca um palpite? Se arriscar vai errar, já aviso. Eu tenho 140 anos. Boquiaberto, hein?! Pois é, meu amigo, 140 anos nestas costas duras que a vida me deu. Se é fácil? Hum… Fácil, fácil não é… Mas é bom. É bom viver. É bom acordar, abrir os olhos e perceber que está tudo bem, tudo em ordem e que terei mais um dia. Aos 140 anos você já não pensa em anos e nem faz planos a médio ou longo prazo, entende? Aos 140 anos você pensa em horas e ter um dia pela frente pode ser uma aventura!
Eu já era uma lagosta idosa quando me pescaram nas geladas águas canadeneses. Foi uma cochilada… Eu sempre havia fugido das redes e sabia evitar os pescadores de plantão. Mas naquela manhã eu não havia acordado bem. Tinha sonhado que não era uma lagosta e sim um urso polar e eu não sabia o que fazer com tantos pelos, com aquelas patas moles e todo aquele corpo molenga. Eu sempre gostei muito de meu corpo, da dureza das minhas patolas. Via-me como um cavaleiro dentro de sua armadura mais elegante, mais reluzente e vivi protegido. Mas, naquele sonho, aquelas carnes e pelos… Eu não sabia andar sem minha estrutura empertigada. Acordei meio mal, entende? Sonhos que mexem com nossa identidade física me deixam mal. Sou uma lagosta sensível. Tá, tá certo… Hoje estou mais pra velho rabugento, mas você também seria um se tivesse 140 anos, não seria não?!
Mas, voltando… naquela manhã eu nadava meio assonado, distraído, e pimba! Me pegaram. Achei que fosse parar numa panela com água fervendo, sentindo meu corpo cozinhar aos poucos. Que morte pavorosa! Já imaginou? A água vai esquentando, você não pode mais apoiar as patas no fundo da panela, não dá pra fugir porque uma tampa o impede de sair e a temperatura da água só subindo, subindo, subindo… Até que você sente uma dor de cabeça sem tamanho, seu coração começa a derreter e nada mais faz sentido. Eu, hein?! E pensar que minhas irmãzinhas lagostas morrem assim… A todo tempo, morrem assim…
Mas quis o destino que eu fosse levado para um aquário e sabe o que me salvou da panela do inferno? Justamente minha idade. O sujeito que me vendeu ao dono do restaurante declarou: “Esta lagosta tem uns 100 anos!” E o dono, que já tinha pago por mim, colocou-me no aquário gigante com outras lagostas muito mais jovens. Toda vez que vinha um cliente escolher o prato do dia eu era o primeiro a ser apontado e eles diziam: “Nossa! Quero aquele lagostão ali… (com 100 anos eu era um grandalhão mesmo)” Mas o garçom avisava: “Aquela? Ah… o George… Sabia que ele tem uns 100 anos?” A declaração do garçom invariavelmente tirava o apetite do cliente, que desistia de comer uma lagosta dura (por conta da minha idade imaginavam que eu teria a carne dura) e queriam tirar uma foto comigo. Pronto! Virei celebridade!
Foram tantas as fotos nestes últimos 40 anos que eu perdi a conta. Fiquei bem em todas. Voce sabe, sou um boa-praça fotogênico.
Agora, depois de 40 anos neste aquário de restaurante, vão me soltar no mar! Tem ideia da minha ansiedade? Eu terei novamente a imensidão do mar como minha casa, estarei livre e sem medo de encontrar algum cliente teimoso que gostasse de carne dura e fizesse questão de me devorar. Vou levar saudade do danado do garçom que me salvou a casca pela primeira vez e passou 40 anos dizendo minha idade e impedindo que eu fosse cozido em águar fervente. Quando eu estiver lá no fundo do mar vou pensar nele antes de adormecer e sempre desejar que ele continue a salvar outras lagostas.
140 anos… Puxa, quando penso… Mas agora, com o mar à vista de novo, tenho certeza de que terei forças para mais 140. Alguém aí duvida? É só bater uma aposta aqui comigo e apertar minha patola!
Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.

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