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Limites éticos e práticos dos discursos transversais na defesa do veganismo

20 de janeiro de 2009
12 min. de leitura
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Uma vez um onívoro me perguntou: “Se sua vontade é divulgar o vegetarianismo e fazer das pessoas vegetarianas, por que você não usa como argumentos, para convencê-las, questões que interessam a elas, como a saúde ou o meio ambiente? Afinal, as pessoas são egoístas e não vão mudar apenas por respeito aos animais”. O texto de hoje é uma resposta a essa pergunta.

Essa tática de trazer pessoas ao vegetarianismo por motivos alheios aos direitos animais é muito comum. No nosso país foi, na verdade, por muito tempo, predominante. Alguns os fazem por não serem, de fato, vegetarianos éticos. Outros porém, adotam, de modo irrefletido, uma postura de que vale tudo para convencer as pessoas a se tornarem veganas/vegetarianas. Não se dão conta do quanto essa atitude pode ser prejudicial à sua própria causa, contribuindo para o seu descrédito em função de informações falsas, incompletas ou parciais que são assim veiculadas.

Essa abordagem se vale, quase sempre, de argumentos marginais à questão central envolvida no debate do veganismo e dos direitos animais, que é a ética. Por isso, costumo chamá-los de “discursos transversais”, que entendo como aquele discurso que usa de subterfúgios e mascara ou minimiza a motivação principal do veganismo para tentar ser mais palatável à audiência, conquistando assim mais adeptos.

Trata-se de assunto extenso, pois para cada questão fundamental do veganismo existe uma espécie de discurso transversal. No caso da experimentação animal, por exemplo, muitos privilegiam a discussão sobre os equívocos e riscos da experimentação animal, deixando de lado a questão ética – o aprisionamento, tortura e morte de seres que deveriam ser livres. Aqui, no entanto, vou me concentrar nos exemplos de discursos transversais usados na defesa do vegetarianismo estrito. Naturalmente, a partir dos exemplos que irei mencionar, os veganos poderão recordar outros exemplos de discursos transversais.

A lista de razões não-relacionadas aos direitos animais para ser vegano é enorme, e todas elas têm uma coerência interna. Tentarei sintetizar seus principais argumentos, para em seguida mostrar o que há de problemático em cada um deles.

Saúde e nutrição. Os benefícios de uma alimentação vegetariano são bem documentados, e já têm o respaldo de profissionais e associações importantes – não necessariamente vinculados ao vegetarianismo. É o caso da Associação Dietética Americana, dos Estados Unidos, que declarou que a dieta vegana é segura e saudável, inclusive para crianças, idosos, gestantes e atletas. Eis o link:

www.adajournal.org/article/PIIS0002822303002943/fulltext

Além disso, há também muitos estudos vinculando o consumo de carne a diversos males de saúde, incluindo câncer, diabetes, hipertensão, doenças coronárias.

Meio Ambiente. A criação de animais para corte é ineficiente do ponto de vista econômico e insustentável do ponto de vista ambiental. Gera poluição do solo, de rios e lençóis freáticos e emissão de gases do efeito estufa, além de desperdício de água em toda a cadeia produtiva, da criação do animal ao tratamento da sua carcaça. Além disso, a pecuária está fortemente associada ao desmatamento e conseqüente perda de biodiversidade, pois a produção extensiva requer vasta extensão de terra para produzir uma grande quantidade de carne, assim gerando pressão sobre as zonas florestais ainda existentes. Todos esses danos da pecuária sobre o meio ambiente foram investigados e detalhados no relatório “Livestock’s Long Shadow” (A Longa Sombra do Gado) da FAO, a Organização para a Alimentação e Agricultura, vinculada à ONU. Este relatório pode ser consultado no link abaixo:

www.virtualcentre.org/en/library/key_pub/longshad/A0701E00.pdf

Problemas sociais. Uma das conseqüências da ineficiência da pecuária, acima citada, é ter sérias implicações na organização da sociedade: concentração de renda, superexploração da mão de obra, dependência das importações de alimentos de países que poderiam ser autossuficientes para alimentar sua população, consequente dependência das flutuações do mercado e seus fatores políticos, além do risco de escassez ao comprometer grande massa de recursos naturais na criação de animais. Alguns chegam mesmo a dizer que a pecuária provoca fome.

Espiritualidade. Reduzi-lo a um só é um recurso simplificador. Existem, na verdade, vários discursos transversais baseados na espiritualidade, que diferem de acordo com a religião que se toma por base. É comum, no caso de espíritas ou hare krishnas, por exemplo, alegar que o ser humano que come animais, come morte, dor, sofrimento, comprometendo a sua evolução espiritual; que o consumo de carne prejudica também práticas como a meditação ou a conexão com formas de vida e conhecimento mais “sutis”. Em outros casos, de acordo com as interpretações, alguns alegam mesmo que o consumo da carne é condenado na Bíblia e outros livros sagrados, e que grandes líderes espirituais como Jesus ou Buda eram vegetarianos.

Somente depois dessas afirmações, lá na nota de rodapé, pode ser que o adepto dos “discursos transversais” venha a mencionar a preocupação ética com os animais. E é assim que os veganos/vegetarianos rapidamente passa a ser associados, pejorativamente, a “naturebas”, “ecochatos” ou “crentes”.

Existem alguns problemas estruturais com esta estratégia de abordagem. A primeira delas é que eles falham em seus próprios argumentos.

Saúde e nutrição. Ninguém nega os benefícios que a dieta vegana pode trazer, menos ainda os riscos do consumo de carne e outros produtos de origem animal. Porém, em primeiro lugar, há o problema desse argumento ter de confrontar-se com um grande contingente de médicos e nutricionistas que defendem o consumo moderado de produtos de origem animal. Estes são profissionais que, por sua formação, detêm uma autoridade que a maioria dos ativistas não possui, mesmo quando são ignorantes em nutrição vegetariana – como em geral é o caso. Além disso, a nutrição não é uma ciência exata, e não há base para argumentar que um consumo muito reduzido de carne ou produtos de origem animal (uma vez por semana? por mês? por semestre? por ano?) não é suficiente para uma pessoa se manter saudável e livre dos riscos do consumo excessivo. Assim, pensaria a maioria dos onívoros, porque iriam recorrer a medidas radicais como a eliminação completa desses produtos?

Meio Ambiente. De novo, o problema pode ser de escala, mais que de estrutura. E se o consumo de animais fosse reduzido? Ou se a tecnologia e a seleção genética – que fatalmente causarão mais violações de direitos – resolverem ou mitigarem os problemas ambientais da criação de animais? Sabe-se que há pesquisas em andamento visando a redução do impacto ambiental da pecuária. O próprio relatório da FAO, acima mencionado, malgrado a extensa lista de danos registrada, não preconiza, em momento algum, o abandono da pecuária por completo e a adoção de uma dieta estritamente vegetariana.

Problemas sociais. Embora de fato a pecuária contribua para diversos problemas sociais, ela não criou nenhum deles. No caso da fome, por exemplo, sabemos que a quantidade de alimento produzida hoje no mundo é suficiente para alimentar toda a humanidade. A criação de animais não faz parte da estrutura do problema, é subsidiária. Os problemas sociais derivam fundamentalmente de fatores políticos e econômicos, e somente nestes campos a solução poderá ser encontrada, na transformação das estruturas de poder e da organização econômica, na distribuição equânime de recursos e renda, e assim por diante. As pessoas não são pobres, desiguais, desprovidas de poder, por comerem carne. Embora, como qualquer outra atividade econômica, a pecuária encerre um elemento de criação de distinções de poder e riqueza, o problema é, aqui, estrutural do capitalismo, não de uma atividade específica. Se o capitalismo fosse vegano, ainda haveria fome, pobreza, desigualdade. Pois continuaria havendo distribuição desigual de riqueza e de recursos, além da assimetrias de poder entre os Estados. Desse modo, todo o discurso transversal dos problemas sociais fica comprometido e se mostra extremamente frágil.

Espiritualidade. Esses discursos transversais esbarra em vários problemas. O primeiro deles, e por si só já suficiente para neutralizar boa parte deles é, como dito, de interpretação. Se há controvérsias sobre como interpretar textos sagrados, ensinamentos de gurus e profetas, etc., dificilmente se conseguirá convencer outra pessoa de que a SUA interpretação é a correta. Especialmente porque as pessoas acreditam naquilo que lhes é mais conveniente e mais adequado à sua forma de agir e pensar de um modo global. Portanto, impulsionar uma mudança requer um trabalho muito mais profundo, de levá-las a questionar seus pressupostos e hábitos, e não apenas de apresentar uma interpretação diferente de ensinamentos espirituais.

O segundo problema é o da veracidade e comprovação. Pode-se dizer que Jesus ou Buda eram vegetarianos, e até apresentar “provas” disso (por exemplo, dizer que o termo “peixe” é uma tradução errada, e que Jesus multiplicou algas). Porém, essas provas não são definitivas e, não havendo nenhum documento fidedigno que comprove as alegações, elas perdem qualquer validade argumentativa.

Um terceiro problema é que vincular o veganismo/vegetarianismo a outro tipo de crença (religiosa, no caso), pode limitá-lo e torná-lo dependente. É comum, por exemplo, vermos jovens que, ao abandonar uma determinada tribo que possui um certo “estilo de vida”, mudam inteiramente seus hábitos – sua forma de vestir, penteado, acessórios, e mesmo alimentação. Se uma pessoa adota vegana/vegetariana por razões espirituais, estará mais propensa a abandonar o veganismo/vegetarianismo se vier a abandonar a fé que motivou essa adoção.

Além disso, é muito comum o uso de subterfúgios para escapar de restrições terminativas. Por exemplo, dizer que só devemos evitar a carne três horas antes da meditação, ou na quaresma, ou Sexta-Feira da Paixão.

Por fim, o dogma religioso pode ser – e geralmente é – antes um entrave do que um convite à discussão do vegetarianismo. O dogma hindu, por exemplo, comanda não o vegetarianismo estrito, mas o lacto-vegetarianismo. Desse modo, convencer um hare krishna a se tornar vegano pode ser tarefa muito mais árdua do que convencer um onívoro que nunca havia parado para refletir sobre as implicações de seus hábitos alimentares. Por isso, penso que é melhor antes evitar por completo o discurso religioso, ao contrário dos demais, que podem ser argumentos subsidiários.

Conclusões. A primeira conclusão a que podemos chegar é que não há razões fortes por trás de nenhum desses argumentos. Mostre a um onívoro que ele pode ser saudável, próspero e viver em ambiente são, comendo só um pouquinho de carne ou produtos animais, e ele jamais irá contemplar ser vegano. Como já ouvi de um onívoro: “Eu não como bacalhau mais que uma vez por ano, mas não quero deixar de comer bacalhau. Gosto de saber que tenho esta opção”. Comer menos carne pode estar no horizonte de um onívoro. Mas do menos ele não vai passar para o zero, a menos que haja uma mudança estrutural na sua mentalidade.

Algumas pessoas poderão até ser convencidas por estes argumentos. Porém, convencer uma pessoa por meio de alegações falsas fará com que ela abandone o veganismo/vegetarianismo assim que for confrontada com alegações que consigam refutar as anteriores, ou simplesmente interpretações distintas que sejam mais convincentes. Se o veganismo/vegetarianismo se funda sobre argumentos frágeis, está mais propenso a sucumbir, mesmo que os contraargumentos também sejam frágeis – e em geral o são. Assim, por exemplo, um vegetariano “pela saúde” por exemplo, muito provavelmente estará propenso a abandonar o veganismo/vegetarianismo em caso de ser acometido de uma doença que rompa com o mito do vegetariano que nunca adoece – substituída, prontamente, por médicos e familiares, pelo mito do vegetariano eternamente sob o risco de adoecer.

É muito provável que a pessoa que se deixe convencer por esses argumentos desista do novo caminho tão logo cessem suas motivações, ou mostrem para ela que “não é bem assim”, o que fará com que se desiluda com a nova descoberta. Muito mais provável que, através dele, ela subitamente desperte para as implicações éticas da exploração animal.

O que nos leva à segunda conclusão. Se torcermos todos os argumentos anteriores até extrairmos o essencial, veremos que todos eles são motivos estritamente EGOÍSTAS: apenas destacam o que há de ruim para o próprio ser humano no hábito de comer carne. Não devemos comer carne e produtos de origem animal, afinal, por que NOS prejudica (espiritualmente, em termos de saúde), ou ao meio em que vivemos – que, no fim das contas, só importa também na medida em que dependemos dele para NOSSO bem estar. Tais discursos, portanto, têm como único efeito reforçar o antropocentrismo que os verdadeiros defensores dos direitos animais devem combater.

Essa é, portanto, a conclusão mais importante, uma vez que, por si só, resume o motivo porque não podemos concentrar nosso discurso nesses argumentos transversais. Como podemos esperar colher maçãs ao plantar bananas? Como podemos esperar que as pessoas se importem com os animais, e os respeitem, ao tirá-los de suas vistas na hora de defender o veganismo? Como podemos esperar derrotar o antropocentrismo reforçando-o com nosso discurso? Não há como.

Daí, claro, podem argumentar (e muitos assim argumentam) que o discurso ético é muito menos palatável, aceito, respeitado. Que o antropocentrismo é tão forte que temos que apelar para ele, pegando os seres humanos onde eles são sensíveis. A minha resposta é que em 20 anos de vegetarianismo vi muitas pessoas deixarem de comer carne por questões transversais – especialmente saúde. Não vi nenhuma delas perseverar. É muito comum que Vegetarianos “pela saúde” ou “pelo meio ambiente” ou “espiritualistas”, por não serem vegetarianos éticos, não seguirem à risca essa dieta. É comum ouvir deles que “não devemos ser radicais”, e assim eles se permitirem a ingestão ocasional de produtos de origem animal – ou seja, não são vegetarianos de fato. Afinal, se não há nada de errado em si em comer animais, que mal há em abrir esta ou aquela exceção em ocasiões especiais?

O que não quer dizer que não possamos usar estes argumentos nunca. Podemos e devemos – usá-los como argumentos auxiliares.  É importante que nosso interlocutor saiba, em primeiro lugar, que o veganismo é viável, sua dieta é saudável e saborosa, assim como são viáveis os demais aspectos do veganismo não abordados aqui (por exemplo, demonstrar que a ciência não depende da experimentação animal para progradir). Porém, para que uma pessoa desperte para as razões ÉTICAS do veganismo/vegetarianismo, ela precisará, constantemente, confrontar-se com elas – JUSTAMENTE por causa do antropocentrismo, que funciona como um véu a encobrir a realidade e embotar o raciocínio. A reflexão ética precisa ser estimulada, enfatizada, e não escamoteada.

Assim, nossa última e mais importante conclusão é que a ÉTICA deve ser SEMPRE o fio condutor das nossas conversas sobre veganismo. O que quer dizer que o veganismo/vegetarianismo deve estar apoiado sobre a filosofia dos direitos animais. Veganismo são os direitos animais na prática, nunca podemos nos esquecer disso. Com algum tempo de experiência no ativismo pelos animais, posso garantir que consegui muito mais adeptos com o meu discurso ético, do que em anos tentando disfarçar minha preocupação central pelo medo de não ser ouvido ou aceito. Uma vez que a pessoa rompeu com o padrão antropocêntrico, o retorno é muito mais difícil, bem menos provável. O caminho ético pode ser o mais tortuoso, o menos popular, mas é também o mais bem fundamentado, o mais coerente – e, portanto, o mais duradouro.

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