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Asas para voar

9 de janeiro de 2009
Paula Brügger
4 min. de leitura
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Certa vez, durante minhas andanças em busca de materiais para uns reparos em casa, entrei num estabelecimento comercial que mantinha um pássaro preso numa gaiola mínima. O desafortunado pássaro pulava desesperado de um lado para o outro, obviamente procurando uma saída, mas nenhum ser humano percebia seu sofrimento. Ao lado de sua minúscula prisão, uma imagem de Nossa Senhora atraiu os comentários de alguém que estava ao meu lado. “Que linda Santa!”, exclamou uma senhora. Eu acenei com a cabeça, concordando, mas meus olhos e coração não conseguiam se distanciar daquela cena de agonia injustificável, já que não se tratava de uma peleja dessas na qual um animal luta para se libertar das garras de um predador, ou sobreviver a algum imprevisto de ordem climática, por exemplo. Pensei, naquele momento, que Nossa Senhora ordenaria a imediata soltura do pássaro, caso ela não fosse apenas uma imagem. Mas talvez não seja assim. Afinal, a tradição judaico-cristã tem uma orientação bastante antropocêntrica. E, enquanto se adoram imagens, seres vivos de verdade amargam uma existência cheia de dissabores.

Passado esse primeiro momento de angústia, me lembrei que não era a primeira vez que via naquela loja um ser alado numa gaiola. Tentei, mais uma vez, argumentar com o proprietário. Mas foi em vão, pois as explicações, nada convincentes, são sempre as mesmas: se a ave for solta morrerá, pois nasceu em cativeiro; ele (proprietário) tem “licença do Ibama” e não é a única pessoa no mundo que tem passarinho engaiolado (então por que polemizar justo com ele, certo?); a ave é muito bem tratada etc. etc., e por fim, a “pérola”: “Tenho porque gosto, cada um tem seu gosto”.

Mas, imagine o leitor, o que aconteceria se cada um de nós fizesse o que bem entende, seguindo apenas o seu gosto… Muitas atitudes consideradas moralmente deploráveis seriam corriqueiras e viveríamos num estado de permanente violência e violação de direitos. Se os animais não humanos não gozam dos mesmos direitos que nós (e o direito à liberdade é apenas um deles), é simplesmente porque somos especistas, isto é, acreditamos que somos superiores às outras espécies do planeta e podemos dispor delas como bem entendermos. E que gosto sádico é esse de privar da liberdade criaturas que nasceram com asas que lhes permitem ir tão longe? O mundo que para elas se descortina, lá do alto, é vasto, multidimensional, multicolorido e repleto de uma miríade de sons, odores e gradientes térmicos. Sua perspectiva é totalmente diferente da mesquinhez imposta pelas suas acanhadas jaulas. Que prazer egoísta é esse de ouvir seu choro, chamado eufemisticamente de canto? Será que os algozes dessas indefesas criaturas crêem ser possível, para nossos ouvidos grosseiros, distinguir entre um canto feliz e um dialeto lamurioso? E será que a ave realmente morreria se fosse solta? O fato é que, caso prefira a morte ao cativeiro, ela sequer terá a chance de fazer a escolha. Está fadada a sobreviver à tortura do cativeiro até que a morte a liberte e possa, finalmente, alçar vôo em direção a outro mundo. Não há gosto, bom tratamento, licença, ou alojamento suficientemente amplo ou confortável (sic) que justifiquem a prisão perpétua de um ser vivo senciente.

Libertação para todos nós

Anos atrás, morei num prédio onde havia um pássaro preto numa gaiola. A ave, em seu cárcere, era colocada sobre o parapeito de uma janela para que pudesse tomar sol e ver, de longe – sem jamais poder viver – todos os prazeres que a natureza lhe ofereceria como parte de sua trajetória na Terra. A cada vez que a ave infeliz entoava seu triste lamento, me lembrava de uma canção dos Beatles chamada “Blackbird”*. Sua letra e sua bela e melancólica melodia nos transportam ao mundo de um melro que canta na calada da noite, sonhando com a liberdade. Mas, para isso, precisa recuperar sua plenitude física. Não sei se a música se refere a um pássaro real, ou se trata apenas de uma metáfora. Pouco importa, pois isso não altera sua mensagem sobre o valor inestimável da liberdade. Que possamos desenvolver, nós humanos também, asas para voar para fora da prisão espiritual e intelectual em que estamos confinados.

Blackbird

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see
All your life
You were only waiting for this moment to be free.

Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.

Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise, oh
You were only waiting for this moment to arise, oh
You were only waiting for this moment to arise.

(*): Blackbird é uma das músicas do famoso “Álbum Branco” do Beatles, de 1968, tido como um dos mais vendidos de todos os tempos nos EUA.

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