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Noites cachoeirenses

12 de dezembro de 2008
5 min. de leitura
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Uma das personalidades mais importantes da literatura brasileira reside no Vale do Paraíba, na própria cidade em que nasceu, Cachoeira Paulista. Trata-se da escritora Ruth Guimarães, que estreou no mundo das letras ainda moça, em 1946, com a publicação de Água Funda, romance elogiado pela crítica e até por Guimarães Rosa.

A partir daí, motivada, ela seguiu avante pelos caminhos mágicos de sua terra e de sua gente, para transmitir aos leitores verdadeiras lições de humildade e encanto. Noites adentro, pelas infindáveis noites cachoeirenses, e Ruth escrevendo…

Perseverante, logrou galgar as barreiras do preconceito – cor, sexo e origens – em uma época em que a mulher, discriminada e quase sem direitos, vivia apenas para servir ao homem.

Formando-se em Letras Clássicas, com especialização em Filologia Românica, Belas Artes, Folclore e Estética, Ruth Guimarães lecionou português durante trinta anos na rede pública estadual e em diversas faculdades, sem prejuízo das freqüentes colaborações literárias aos jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Teve como mestres Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Amadeu Amaral. Como colegas, Cecília Meireles, Carlos Heitor Cony. Como admiradores, milhares de alunos que tiveram a honra de ouvir seus conselhos e ensinamentos.

Ruth Guimarães conhece bem as armadilhas do difícil ofício de escrever: “Difícil é contar com palavras o que não necessitou de palavras para ser revelado. Pobres, ineptas palavras, que servem para complicar o pensamento e cortar as asas do sonho”.

Mas, apesar disso, ninguém melhor do que ela para contar a saga das aventuras humanas, pela ótica de suas personagens caboclas, em meio a casinhas de pau-a-pique e goiabeiras em flor. Seus textos, singelos como a sua gente, têm na alma poesia e sentimento:

“Há o tempo de rir e o tempo de chorar; o tempo de amar e o tempo de morrer; o de falar e o de calar”, escrevera ela, certa vez, como que definindo, sabiamente, a vida e seus segredos. Florescia, assim, a obra da professora Ruth, perfazendo-se, vigorosa, no romance, na poesia, no ensaio e na crônica.

Tecendo seu casulo de Marie Curie pelo silêncio mineral das noites cachoeirenses, Ruth Guimarães escreve. Junto a si flamejam duas igrejas de Santo Antônio: uma catedral no alto do morro, encostada ao céu; outra, trêmula, refletida no espelho das águas. As ruas escurecendo longas, sob o testemunho das árvores agitadas. Grilos, sacis, corujinhas-do-campo. Latidos de cães sem dono. Um violão entoando lamentos de amor. E o apito comprido do trem na noite.
São essas algumas das imagens da artista, que, da janela onde desabotoa a flor de sangue do gerânio, ouve estrelas para registrar – em breve instante – a face do tempo que comove.

Dizem que a justiça tarda mas não falha. Com Ruth Guimarães esse ditado popular tornou-se ainda mais verdadeiro. É que no último dia 18 de setembro, a octogenária escritora – que já teve seu nome incluído no Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis, na História da Inteligência Brasileira e na enciclopédia Larousse Cultural –  passou a fazer parte, enfim, da Academia Paulista de Letras. É um justo reconhecimento por sua primorosa contribuição à literatura brasileira.
Mas, sem se importar com tantas láureas ou com proclamada imortalidade, ela continua firme em sua nobre missão de educadora: “Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a minha única humanidade disponível”. E assim, no fiar incessante desse casulo de encantamentos, a lagarta, quase sem querer, renasce borboleta…

O texto abaixo transcrito, de Ruth Guimarães, faz parte de Crônicas Valeparaibanas, publicado em 1991. Chama-se “Poema da Falsa Primavera”, um belíssimo e comovente canto de amor à natureza:

“Minha palmeira não lê os jornais e por isso floriu. Magnificamente alheia, a não ser à luz e ao zéfiro, aos vendavais e ao frio, ao sereno da noite e à madrugada, ela floriu.

Não lê os jornais. Floriu.

Não de uma vez e inesperadamente, como julgamos e como sentimos, ao vê-la de repente em rosa e branco. Não foi de uma vez, que o tempo, esse mesmo que não existe, conta muito. Devagar, como todas as coisas boas, ela floriu. Iara dançarina, desnastrara ao vento, quanto vez, a verde coma, e por ela repassara e repassara, frio e fino, o pente de prata da chuva. Já esteve de anadema feito de seda clara do luar. Já se envolveu de neblina, em noites de junho, quando os dedos do inverno tinham frialdades arrepiantes de mortalha. Já esteve toda encharcada de chuva, quando cada gota pingava como lágrima das ramadas da esmeralda. Mas agora floriu. É comovente vê-la, tão suave. Oh! Beleza indestrutível das coisas frágeis. Oh! Beleza eterna das flores, diante da mágoa e a bruteza transitória dos homens! Ela floriu.

Pelos caminhos (de onde vêm? para onde vão?) passaram arregimentados uns homens que iam para o não sei onde, combater não sei o que. Sei que a palmeira floriu em rosa e branco e fez grandes gestos fantásticos, diante do vento, Excelência, Excelência, como dança! Que minueto! Vamos, dancemos! Vamos, a vida é tão breve, tão boa, e o perfume inebria, dancemos! Que mundo estranho! Que mundo estranho! Que estranho mundo! Por que devo amar o vento? Por que devo amar a chuva? Por que devo amar a nuvem? E as pétalas de sede rodopiam. Ela floriu.

Ansiedade é uma palavra assombrosa. Medo também é.

Ansiedade e medo transfiguram a vida, enchendo de sombra o que devia ser amplo e claro. Não é primavera, mas é o tempo e a paineira floriu. Ela não conhece palavras, nem o seu terrível significado. Floriu.

Quem a vê, rosa e branco? Quem a ama, rosa e branco? Quem, diante dela, se extasia, rosa e branco? O mundo tenta iniciar a dança louca, à música dos tambores e ao compasso do medo e da ansiedade. Rosa e branco, ela floriu.

Os homens ora falam em república, ora em democracia, ora vestem camisa parda, ora verde, ora vermelha, querem outras leis e outras reformas, e outros privilégios e outros senhores. Querem o calor no inverno e a fresca brisa no verão. Querem a mulher que nega, e desdenham da que se entrega. Querem o vinho e o jogo e o prazer e o paraíso. Querem a flor e querem o seu fruto. Querem o pássaro morto e asa de pássaro no firmamento. Dizem a palavra que dói, fazem o gesto que mata. A paineira floriu.

A mesma história se repete todos os anos, por todos os séculos, per omnia saecula, rosa-e-branco, é o tempo, ela floriu.”

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