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Cão que resgatou cachorro atropelado vira herói no Chile

11 de dezembro de 2008
5 min. de leitura
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Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA
Os chilenos têm um novo herói: um cão. Uma câmera de vigilância de uma estrada de Santiago gravou imagens de um cão andando entre carros em alta velocidade para puxar o corpo de outro cão que morreu atropelado. Equipes da estrada removeram os dois animais e o herói fugiu.
Sabe por que eu saí de casa? Porque eles me batiam. Todos eles. Os pais viviam nervosos e brigavam o tempo todo. Desde que o dia clareava, aqueles dois iam emendando uma discussão na outra até que um explodia e alguma coisa era arremessada ao chão: pratos, copos, controle da tv. Os filhos imitavam os pais e viviam às turras, implicando com tudo e acabavam aos tapas no chão. Só o caçulinha era menos nervoso, mas nos últimos tempos deu pra puxar meu rabo.
Desde que cheguei, trazido de um petshop, virei saco de pancada. Às vezes as crianças até queriam brincar, mas eram tão brutos que eu acabava machucado.
Fui suportando por causa da comida, da água e do meu canto limpo pra dormir. Mas chegou um dia em que foi demais. O pai entrou em casa alterado, cheirando à bebida. A mãe começou a discutir e, em instantes, jogou nele a panela com macarrão. Apanhou, é claro. Os meninos pularam no pai. Apanharam também, é claro. E eu pulei nele para defender os meninos. Apanhei mais que todos. Ele descontou, sem dó, a raiva em mim e me jogou no quintal.
Fiquei ali, respirando e sentindo dor a cada batida do meu coração. Com o passar das horas estiquei as patas da frente. Não estavam quebradas. Depois de mais um tempo, estiquei as patas de trás. Estavam bem. Quando o dia amanheceu, não tive dúvida. Meio mancando, ainda dolorido, fui embora. Segui o vento fresco da manhã. Até olhei para trás. Mas não tinha jeito. Eles não iriam mudar e eu precisava ir embora antes que me matassem.
Andei até anoitecer. Estava faminto quando dei numa estrada. Andei mais ainda e só cochilei algumas horas antes de o novo dia chegar.
Quando ele chegou, as dores estavam mais leves. Eu já não mancava tanto. Estava ali na estrada, pensando qual direção seguir quando o Alende veio andando sem pressa. Cachorro idoso, cigano, sem dono, sem rumo. Como me explicou, ele seguia o cheiro da comida. Ofereceu carona e eu fui. Não tinha mesmo mais nada pra fazer. Depois de algumas horas, comecei a sentir também cheiro de comida no ar. “Preste atenção, adestre seu focinho, rapaz!” Essa era a lição do dia que o Alende me dava. Chegamos a uma lanchonete de beira de estrada, dessas onde os caminhoneiros param. Havia vários deles por ali, em mesas improvisadas. Comiam e tomavam cerveja.
Fomos chegando de mansinho, os rabos entre as pernas e os caminhoneiros nem se importavam com nossa presença. Havia bastante comida no chão. Eles comiam derrubando de tudo, espalhafatosos, alegres, barulhentos. Dois deles, já bem alegres de cerveja, baixaram os próprios pratos pra nós. Ah, daí eu fiz a festa! Comi tudo que pude. Não sabia quando seria a próxima refeição. Foram algumas semanas assim: andando, comendo aqui e ali e dormindo. A vida parecia boa, eu não apanhava mais e, se alguém fosse grosseiro, era só sair correndo, queimando as patinhas no asfalto.
Até aquele fim de tarde. Fomos atravessar a estrada e o Alende não conseguiu. Eu não sei se ele tropeçou nas patas, se já não era mais tão ágil por ser um cão idoso. Não sei se o carro acelerou e o Alende não conseguiu perceber, nem se ele passou mal enquanto corria. Só sei que um carro o pegou. Eu ouvi o ganido e meu coração disparou. Não podia parar no meio da estrada e continuei correndo. Quando olhei do lado de lá: que tristeza! O Alende estava morto, não havia o que fazer. Lati desesperado, mas ninguém me ouvia.
Foi então que meu deu aquele negócio, sabe? Uma vontade de tirar o Alende dali porque o corpo dele seria destruído. Já não bastava morrer? Tinha que ser tão profanado assim? Eu tinha que tirar o Alende dali.
E fui. Corri, fiz ziguezague, ouvi freadas bruscas, palavrões. Não consegui. Era pesado o meu amigo idoso. Voltei para o acostamento. Recuperei o folêgo e comecei de novo: corrida, ziguezague, freadas e palavrões.
Na terceira tentativa, enquanto eu puxava com a boca o corpo do meu amigo, foi que percebi que uns malucos estavam me filmando. Que folgados! Por que não me ajudavam? Comecei a latir muito bravo e nada. Eles só queriam mesmo filmar o resgate. Até que apareceram uns homens de uniforme, pararam o tráfego, pegaram meu amigo e nem foi preciso me chamar. Segui o cortejo até o outro lado da estrada. Quando colocaram o corpo do Alende no chão eu dei nele a última focinhada: “Adeus, amigão…” Saí correndo. Os doidos com câmeras na mão queriam me pegar. Lembrei da minha família, das surras e achei melhor sumir do mapa.
Tenho mil estradas pela frente e sempre haverá um caminhoneiro tomando cerveja e dividindo o almoço comigo. Sigo o vento, sigo o cheiro da comida.

Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.

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