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Sem face

6 de fevereiro de 2017
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Diante do portão entreaberto, após longa ausência de casa, ele hesita. Tocar a campainha e permanecer na calçada até que alguém venha recebê-lo? Ou propalar aos quatro ventos que está voltando? Não, melhor mesmo é entrar discretamente, para não desfazer a surpresa. Do quintal dos fundos o cão logo aparece, abanando o rabo como se saudasse um velho conhecido. Depois da recepção calorosa, com direito a patinhas na calça e lambidas nas mãos, o homem vai em frente.
Ulisses regressado, assim se sentia. Do cais do porto à cidade que foi sua, ele tem pressa de chegar. No trajeto à vila bem que notou algo diferente nas pessoas. Ao comparar as faces da partida com as que revê na chegada, percebe que agora havia nelas uma certa dispersão, gente falando sozinha, aquele olhar sem ver, qualquer coisa que não sabia definir melhor. Era como se uma sensação de estranheza tomasse as ruas e se espalhasse por toda parte, fazendo que ele se sentisse estrangeiro em seu próprio espaço natal.
Ao cruzar a sala encontra o menino (nossa, como cresceu!) no sofá, com os olhos pregados numa tela mágica que parecia hipnotizá-lo. O ruído constante que saía do brinquedo tornava o contato impossível entre os dois. Impaciente, após tocar no ombro do rapaz, o homem fala bem alto: – Êh, êh, olha quem está aqui! Não se lembra mais? Me dá um abraço! Apelo em vão: o jovem conectado permaneceu estático em seu lugar e, por um momento, ao erguer a face na direção de seu interlocutor, parece não notá-lo. A frustração do viajante só não foi maior porque os gatinhos que corriam no tapete logo vieram enroscar-se em suas pernas, como que lhe dando boas vindas.
Tomado pela ansiedade de recompor aquilo que se interrompeu num passado ainda tão presente, ele adentra no quarto esperançoso de rever a mulher da qual o destino o afastou. Ela de fato estava ali, sem novelos nem mortalhas, sentada na cama a interagir com outro aparelho áudio-visual pra lá de mirabolante. Bem que tentou atrair a atenção dela, abrindo os braços em acolhida, apontando para si mesmo ou, então, arriscando uns passos de dança. De nada adiantou. Completamente alheia a todo esse gestual cômico, sua Penélope permaneceu firme no concentrado esforço de digitação, a sorrir para aquela misteriosa caixa de prazeres (ou seria de Pandora?).
Eis que ela, sem desprender os fones de ouvidos, levanta-se para então se postar na penteadeira. O homem, seguindo-a até o espelho, espera ser reconhecido. Qual o seu espanto, porém, ao olhar para o vidro refletor. Ao contrário da mulher, ele não tinha face! Como assim? Junto à imagem feminina ali projetada, via-se apenas roupas velhas suspensas no ar. Acéfalo e atônito, não sabia como conseguia enxergar sem possuir olhos, tampouco como podia sentir sem ter um corpo. A alegria do reencontro logo se converte em angústia: – Que diabo sou eu? Um homem invisível, uma alma penada, um vampiro solar, um cabide ambulante ou um morto ressuscitado num mundo que não mais me pertence?
Ele não tem face, acredite quem quiser. Paria social na terra dos homens: não tem face! Desapontado com tudo e (quase) todos, o navegante resolve de novo partir. Abriu a porta, desapareceu… Mais bonita, para ele, é a linha do horizonte, cujo apelo de liberdade deixa de ser apenas uma utopia. Era preciso velejar em busca desse outro tempo/espaço das possibilidades. Lá onde rios, florestas, bichos, plantas, peixes e pássaros compõem o cenário esquecido do mundo real. Lá onde o vento da estação aponta para a direção do Outro. Lá onde o Eu profundo e a natureza subvertida reencontram, juntos, a sua face perdida.

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