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“Maus-tratos” e a politização da libertação animal

11 de setembro de 2016
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Quando a teoria feminista entrou na minha vida, trouxe um entendimento melhor da Lei Maria da Penha. Para quem não sabe, trata-se de um dispositivo legal sancionado em 2009 que visa tratar com rigor especial a violência familiar, principalmente perpetuada no âmbito doméstico contra as mulheres. Mais do que um instrumento jurídico, ela é uma politização da discussão sobre a violência contra a mulher. Trouxe para o âmbito institucional a ideia de que os dispositivos legais existentes até então eram ineficientes para proteger mulheres em situação de abuso, e incapazes de responsabilizar propriamente os abusadores. E, realmente, ela trata de uma forma de violência bem específica; a qual envolve afetos e responsabilidades que colocam as mulheres em uma situação especialmente fragilizada. A lei deu mais evidência para esta discussão na arena pública e politizou o tratamento deste tipo determinado de abuso. É uma demanda conectada aos movimentos sociais de mulheres; à militância da própria Maria da Penha, que foi agredida sistematicamente pelo marido por anos. Se no âmbito jurídico a lei funciona ou não é outra questão; mas não há dúvida que trata-se de uma legislação revolucionária por seu conteúdo social.
A lei Maria da Penha me fez pensar sobre a ideia de “maus-tratos”. Aprendi esta expressão quando era criança: ouvi algum professor na minha escola, não lembro quando, lamentar o estado de uma égua presa, tomando sol em um terreno baldio. Desde então, só escutei esta expressão quando referida a animais negligenciados ou machucados por seres humanos. Será que esta expressão qualifica e contextualiza a violência contra animais? Será que ela ajuda a politizar o movimento? Deparei-me com os usos mais díspares possíveis desta expressão. Já vi ser usada para descrever um tutor que não banhava seu cachorro; uma mulher que adornava seu poodle com vestidos e bijuterias; um tal de “encantador de cães” que cutucava, chutava e enforcava seus cachorros para lhes impor disciplina; um homem que separava o bezerro da mãe lactante; que espancava seu frangos a chutes até morrer; um caçador que viajava até a África para matar animais; até uma indústria sem rosto que explorava seus indivíduos exaustivamente para depois os matar sem piedade. Concordemos que são atos bem diferentes e uma só expressão foi usada para descrever todos eles. As práticas acima envolvem assassinato à sangue frio, por inanição, tortura, roubo, latrocínio, cárcere privado, abuso de dependente, abuso sexual e por aí vai. Mas quando se lê uma reportagem sobre um animal que é assassinado brutalmente não há nenhuma destas expressões, somente “maus-tratos”. Desta forma, toda a violência até soa inofensiva. Uma simples expressão previne a exploração sistêmica de animais pela indústria de ovos e laticínios de ser qualificada como abuso sexual, eugenia e cárcere privado; de conceber um treinador que chuta seus cachorros como torturador; de definir um caçador que tira um animal de seu habitat natural e o vende a um zoológico como um sequestrador; ou mesmo de enxergar o dono do zoológico como um senhor de escravos.
A sociedade não qualifica a violência contra outras espécies. O animal não é visto como indivíduo, mas como uma concepção genérica de vida. A violência contra ele não é qualificada pelos contextos sociais que agravam sua condição, como acontece na Lei Maria da Penha. Ao contrário, é relativizada e resumida a “maus-tratos”. A moralidade hegemônica concebe os esforços em prol dos animais como fruto da “bondade”, da virtude humana. Como se o autor de um cuidado não tivesse responsabilidade de fazê-lo, mas assim mesmo o fizesse por ser uma pessoa virtuosa. Também quando pautado pelo pragmatismo, o cuidado ao não-humano se perde nos grandes esquemas de gestão da vida. O ambientalismo, por exemplo, na maioria das vezes, administra não-humanos como se fossem recursos. Morrem uns aqui e ali, mas o importante para esta lógica é preservar a “fauna” e o “equilíbrio”. No embate entre a caridade e o pragmatismo, só uma coisa permanece ausente: o protagonismo do animal. A ideia de vontade não é simples. Talvez vontade, humana ou não, nem exista em uma sociedade na qual a maioria dos seres já nascem sob opressões que os sufocam antes de aprenderem a questioná-las. Mas o que é roubado dos animais, certamente, é o papel que eles precisam ter nas próprias vidas. Eles são jogados de um lado para o outro e usados para limpar a consciência de seus supostos heróis.
Esta síndrome de messias não afeta somente o pensamento hegemônico, mas também pauta os movimentos de direitos e libertação animal. De um lado, tem a turma do pragmatismo, que coloca tudo em termos éticos, como se as nossas relações opressivas com animais fossem resultado de uma contradição lógica. Lêem autores e autoras famosas da ética animal e passam a agir como se tivessem encontrado a luz; um discernimento moral que os diferencia universalmente dos comedores de carne, independentemente do contexto social em que estão inseridos. De outro, há o esforço que pauta a militância pelo afeto. Neste grupo, quanto mais o animal é convidativo ao afeto humano, mais chances ele tem de ser alvo dos esforços ativistas. Isso não se resume a cachorros e gatos; mas vacas, galinhas, baleias e diversos outros animais. Quanto mais próximo emocionalmente ao ser humano e disposto a aceitar seus avanços afetivos, mais é objeto de “salvação”. O amor, o carinho e o afeto são ferramentas poderosas para provocar o envolvimento político, assim como a ética também o é. Contudo, há de se compreender que estas motivações não redimem o ser humano de sua posição opressora mas, ao contrário, muitas vezes são usadas para manter as estruturas de opressão intocadas.
Não há sequer um movimento social além do animal que se conforme tão facilmente em recondicionar a hegemonia ao invés de derrubá-la. Jamais o movimento negro se contentaria em manter as assimetrias raciais que assolam o mundo, caso todos os negros fossem “melhor tratados”. Da mesma forma, nunca o movimento feminista aceitaria um sistema de submissão ao patriarcado caso os maridos “tratassem melhor” as esposas. Os movimentos sociais, em geral, buscam emancipações, novos protagonismos. Mas infelizmente, o movimento de libertação animal muitas vezes esquece disso em prol de tirar animais da tutela de “humanos ruins” e colocá-los sob tutela de “humanos bons”. Obceca-se, por um lado, em definir quem merece “ser salvo” (quem é senciente, sujeito-de-uma-vida ou razão de seu afeto) que se esquece de questionar o principal: como renunciar o próprio privilégio? Como eliminar ou diminuir o monopólio da dominação sobre a vida não-humana ao invés de simplesmente brecá-lo ou reformatá-lo? A lógica deveria funcionar ao contrário. Devíamos primeiro questionar nossa própria racionalidade, excesso de poder, privilégios e egocentrismo, antes de nos colocarmos em uma posição de bastiões da definição de vida, senciência ou afeto. Devemos questionar nossa própria prerrogativa de juízes e executores, pois ela é justamente a manifestação maior da opressão humana sobre os animais. Ao invés de perguntar quem merece os mesmo privilégios que temos, quem será abençoado por nosso heroísmo, deveríamos perguntar antes se devemos ter os privilégios que temos ou se somos mesmo os heróis redentores daqueles que oprimimos. Estas questões não possuem respostas fáceis. Não há como saber se é simplesmente uma questão de se estender ideais de moralidade humana para os animais, se não os escutamos, ou mesmo se é possível que haja afeto entre um ser humano e um gato, cachorro, barata ou aranha que não seja opressivo aos não-humanos em questão. Mas é fato que não perdemos tanto tempo questionando nossa condição humana como perdemos definindo e administrando a vida animal nos nossos termos e nos vangloriando de fazê-lo.

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