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O Espelho

17 de junho de 2014
3 min. de leitura
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Estudos de comportamento animal revelaram, há tempos, que alguns primatas – chimpanzés, bonobos e orangotangos, por exemplo – têm a capacidade de se reconhecer no espelho, o que seria uma prova de autoconsciência. Golfinhos e elefantes também passaram nesse teste, após identificar no vidro refletor a imagem perfeita de si. Ocorre que o mesmo resultado, segundo os etólogos, não se repete com cães e gatos, que costumam permanecer indiferentes perante o espelho (embora isto não altere em nada sua capacidade cognitiva e percepção do mundo). Pesquisas à parte, o fato é que muitos dos animaizinhos com os quais convivi na vida demonstraram ainda mais inteligência por ignorar, solenemente, os espelhos de casa.

Existe um milenar sentido simbólico nesse objeto especular que nos leva a ver, a analisar, a refletir sobre nossa própria condição. Na literatura brasileira autores como Machado de Assis, Clarice Lispector, Érico Veríssimo ou Rubem Braga, para citar apenas alguns, deixaram páginas memoráveis sobre o tema do espelho. O lingüista russo Mikhail Bakhtin escreveu certa vez que, embora pareça, o espelho não é o que verdadeiramente somos: isso porque seu brilho não contém a essência do ser. E muitas vezes a visão que temos de nós difere do olhar de outro observador. Outras vezes nosso julgamento é impiedoso.

Nessa sondagem do eu-profundo e do outro-eu permito-me descer as escadas do tempo para reencontrar o eu-menino. Vejo-me então no quarto de minha avó, defronte à penteadeira onde reina um espelho gigantesco. Brincando com as imagens especulares, olho-me fixamente por vários minutos, quase sem piscar, até que as imagens petrificadas começam a mudar de forma. Diante de mim vai aparecendo um rosto que não conheço, espectro fantasmagórico em processo de mutação e com certa familiaridade de feições. Quem és tu? Parece que lhe posso escutar a voz abafada, alarme sei lá do que, qualquer coisa estranha que não compreendo e que já não quero ver.

De volta ao presente, sepultados os meus mortos, preciso deixar claro que não sou supersticioso e que os espelhos nada me incomodam. Se bem que uma vez quebrei por acidente o cristal da parede da sala e, por sete anos consecutivos, tive perdas tantas que aqui não vêm ao caso desenterrar. Até uma coruja agonizante cheguei a ouvir, por noites a fio, nos arredores daquele quintal que se tornou cimento. Deus é testemunha, daí pra frente foi só desastre. Outro dia, desprevenido, pensei ter visto refletido no banheiro o mesmo sujeito disforme e sorumbático no que o eu-menino se metamorfoseava. Tomei um baita susto.

Pelo espelho poliédrico de nós a nós mesmos, enfim, vai seguindo a vida em seus desatinos. Ali habita o vulto invisível que, cedo ou tarde, nos levará. Nosso último olhar para as coisas do mundo um dia ali ficará. Também ali se revelará a nossa palavra definitiva. Quem dera pudéssemos ser como nossos cãezinhos e bichanos, indiferentes ao fascínio e à ruína dos espelhos. Quem dera pudéssemos ver e ao mesmo tempo não ver a nossa imagem fugaz e efêmera. Quem dera pudéssemos ter a sabedoria dos animais…

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