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Defesa naturalista do especismo baseada nas distinções biológicas

31 de dezembro de 2014
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garoupa-gigante
O seguinte argumento é muito comum:
“As espécies, diferentemente das raças, existem, biologicamente falando. Ou seja, não são meras construções humanas. As raças, pelo contrário, são meras construções humanas; não existem naturalmente. É por esse motivo que a analogia entre racismo e especismo não funciona, e é também por isso que o racismo é errado enquanto o especismo não é”.
Esse argumento baseia-se no naturalismo normativo das distinções naturais, que diz o seguinte:
Naturalismo normativo das distinções naturais:
(1) Devemos basear a moralidade (ou seja, as razões para agir) nas divisões biológicas;
(2) Logo, uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana.
Existe uma defesa do especismo que é baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
Defesa do especismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(A1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana (premissa moral);
(A2) Espécies existem naturalmente; não são uma construção humana (premissa factual);
(A3) Logo, o especismo está justificado.
Normalmente, o argumento acima é endereçado como uma resposta à alegação de que o especismo é uma forma de discriminação análoga ao racismo. Alguém que é contra o racismo mas é a favor do especismo, além de endereçar o argumento acima, comumente também endereça este outro, também baseado no naturalismo normativo de distinções naturais:
Defesa do anti-racismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(B1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(B2) Raças não existem naturalmente; são uma construção humana;
(B3) Logo, o racismo é errado.
A defesa do anti-racismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais, por sua vez, geralmente é endereçado como uma resposta à defesa do racismo baseada também na mesma premissa. Vejamos:
Defesa do racismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(C1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(C2) Raças existem naturalmente; não são uma construção humana;
(C3) Logo, o racismo está justificado.

Segundo o naturalismo normativo de distinções naturais, um sistema de escravidão baseado em tipos de narizes estaria justificado.
Segundo o naturalismo normativo de distinções naturais, um sistema de escravidão baseado em tipos de narizes estaria justificado.

Ou seja, é feita uma defesa do racismo baseada na idéia de que as distinções naturais são relevantes para as decisões morais. O suposto anti-racista (o proponente do argumento B), quando critica o argumento C, ao invés de criticar a premissa moral (C1), critica a premissa factual (C2). Se ele acredita que a discussão sobre se C2 é verdadeira ou falsa é relevante para saber qual a conclusão prática correta, então é porque ele está a concordar com C1. E, isso fica evidente, quando vemos que B1 e C1 são exatamente iguais. O racista e o suposto anti-racista só possuem conclusões opostas quanto ao racismo porque possuem discordâncias quanto aos fatos. Ambos não discordam moralmente. Ambos assumem o seguinte:

“se raças forem uma distinção natural, e não uma construção humana, o racismo está justificado”.
Assim sendo, estamos diante de um caso de divergência moral apenas aparente. Isto é, estamos diante de posições que mantém conclusões morais opostas, mas apenas porque discordam dos fatos, já que concordam em termos do que é relevante para determinar as razões para agir. No caso, ambas as visões compartilham a premissa de que, caso existam raças naturalmente, então que isso justificaria o racismo. Ou seja, a divergência entre eles é factual, e não, moral.
O mesmo por vezes acontece na discussão sobre a moralidade do sexismo. Compare esses dois argumentos:
Defesa do sexismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(D1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(D2) Gêneros existem naturalmente; não são uma construção humana;
(D3) Logo, o sexismo está justificado.
Ao responder ao argumento D, anti-sexistas muitas vezes utilizam o seguinte argumento:
Defesa do anti-sexismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(E1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(E2) Gêneros não existem naturalmente; são uma construção humana;
(E3) Logo, o sexismo é errado.
Mais uma vez, as conclusões são divergentes não por divergência moral, e sim, por divergência quanto aos fatos. Ou seja, ambas as posições estão a assumir que, se ficar provado que as distinções de gênero forem naturais, e não, construções humanas, então, que a discriminação com base no gênero está justificada. Isso fica comprovado pelo fato de o suposto anti-racista ou anti-sexista pensarem que é relevante passar tempo investigando se o racismo e sexismo são ou não práticas naturais. Se não compartilhassem da premissa moral em questão, simplesmente diriam que é irrelevante, para saber se uma prática é ou não justa, saber se ela baseia-se em uma distinção natural ou não. Assim sendo, ambos compartilham da idéia de que o fato de uma distinção ser ou não natural é relevante para saber se uma discriminação que nela baseia-se está correta ou não.
Essa visão (que é equivocada, como pretendo mostrar a seguir) sobre no que deveria estar fundada a igualdade humana explica o motivo pelo qual muitas pessoas que são supostamente “anti-racistas” (aceitam o argumento B) defendem também o especismo, baseando-se no naturalismo normativo das distinções naturais (argumento A). Poderia acontecer de alguém que tivesse o mesmo tipo de entendimento quanto à moralidade das discriminações (ou seja, que elas estão justificadas caso basearem-se em distinções naturais) ser contra o especismo devido ao seguinte argumento:
Defesa do anti-especismo baseada no naturalismo normativo das distinções naturais:
(F1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(F2) Espécies não existem naturalmente; são uma construção humana;
(F3) Logo, o especismo é errado.
Novamente, se fosse esse o caso, a divergência entre o especista e o suposto anti-especista seria apenas quanto aos fatos, e não, uma divergência moral. Quem acredita que o erro com as defesas do especismo, racismo e sexismo baseadas nas distinções naturais está na premissa factual, e não na premissa moral (em, supostamente, na visão dessas pessoas, espécies e/ou raças e/ou gêneros serem construções humanas), deveria se perguntar, fazendo um experimento hipotético: “e, se ficasse provado que essas distinções são naturais? Isso justificaria as discriminações que nelas se baseiam?”.
Se as resposta for “não”, então tal pessoa não aceita a premissa moral do naturalismo normativo de distinções naturais. Nesse caso, não deveria então centrar a discussão sobre a premissa factual, já que, de qualquer maneira, sendo tal premissa verdadeira ou falsa, essa pessoa manteria que isso não é relevante para se saber qual a conclusão correta, porque, para começar, não aceita a primeira premissa. Ou seja, nesse caso, alguém esta a cometer o erro de discutir a premissa factual quando o que deveria estar em discussão é a premissa moral.
Mas, e se alguém respondesse: “sim”? E, se alguém realmente acredita que, se raças, gêneros e espécies se provarem ser distinções naturais, então que o racismo, sexismo e especismo estão justificados? Temos de, então, avaliar a plausibilidade da premissa moral, ou seja, avaliar a plausibilidade do naturalismo normativo das distinções naturais.
Avaliando a plausibilidade do naturalismo normativo de distinções naturais
Como vimos, o naturalismo normativo de distinções naturais mantém o seguinte argumento:
(1) Devemos basear a moralidade (ou seja, as razões para agir) nas divisões biológicas;
(2) Logo, uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana”.
Normalmente, nas defesas do especismo que tem como base essa visão, o argumento acima aparece de maneira oculta. Por estar oculto, é fácil acontecer de não o percebermos, e, então, não o avaliarmos. Mas, quando percebemos sua presença e o testamos, vemos que ele é altamente implausível. Para começarmos a perceber esse ponto, considere algumas implicações da mesma premissa do naturalismo normativo das distinções naturais:
(G1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(G2) Tipos de cabelo existem naturalmente; não são uma construção humana;
(G3) Logo, a discriminação por tipos de cabelo está justificada.
Ou
(H1) Uma discriminação (favorecer uns e desfavorecer outros) é justificada quando for baseada em uma distinção biológica, e não em uma construção humana;
(H2) Tipos de nariz existem naturalmente; não são uma construção humana;
(H3) Logo, a discriminação por tipos de nariz está justificada.
O que enderecei acima foi um argumento de redução ao absurdo. Tentei mostrar que o naturalismo normativo de distinções naturais leva a conclusões absurdas. Contudo, um defensor dessa visão poderia objetar: “isso não mostra o que há de errado com a minha visão; pode muito bem acontecer que o que você considera absurdo não o seja; afinal de contas, nossas intuições podem estar erradas”. Assim sendo, é necessário um argumento adicional que explique o erro com o naturalismo normativo de distinções naturais.
Tal argumento é o argumento da relevância. Ele mostra que o naturalismo normativo de distinções naturais baseia-se em uma característica irrelevante para o que está em discussão. Percebemos que tal característica (uma distinção ser natural ou uma construção humana) é irrelevante para saber o grau de consideração que é devido a alguém quando perguntamos “por que alguém precisaria de consideração?”. Temos de perguntar, para o defensor do especismo baseado no naturalismo normativo de distinções naturais: “por que os humanos devem ser considerados?”. Alguém precisa de consideração porque é passível de ser prejudicado ou beneficiado, e isso é totalmente independente de saber se o critério de discriminação que alguém está a aplicar é natural ou socialmente construído.
Argumento da relevância aplicado à consideração moral
(1) Devemos rejeitar as teorias inadequadas e acatar as adequadas
(2) Uma teoria adequada deve basear-se em distinções que são relevantes para a área à qual ela pertence
(3) Logo, uma teoria moral adequada deve-se basear em distinções moralmente relevantes
(4) Para uma distinção ser moralmente relevante, ela precisa ter a ver com o motivo pelo qual faz sentido existir a questão moral específica que está a ser discutida;
(5) A questão sobre a consideração moral só faz sentido porque é possível prejudicar ou beneficiar alguém com as nossas decisões;
(6) Logo, qualquer distinção com relação à consideração moral, para ser relevante, tem de estar baseada na possibilidade de alguém ser prejudicado ou beneficiado.
… aplicando esse raciocínio ao caso do naturalismo normativo de distinções naturais:
(7) O naturalismo normativo de distinções naturais mantém que o que é relevante para a consideração moral é saber se o critério de discriminação baseia-se em uma distinção natural ou artificial;
(8) O fato de um critério de discriminação ser natural ou artificial não é relevante para saber se há possibilidade de alguém ser prejudicado ou beneficiado;
(9) Logo, o fato de um critério de discriminação ser natural ou artificial não é moralmente relevante [essa conclusão segue do passo 6]
(10) Logo, o naturalismo normativo de distinções naturais baseia-se em uma característica moralmente irrelevante [essa conclusão segue dos passos 7 e 6]
(11) Logo, o naturalismo normativo de distinções naturais não é uma teoria moral adequada [essa conclusão segue do passo 3]
(12) Logo, deve-se rejeitar o naturalismo normativo de distinções naturais [essa conclusão segue do passo 1].
Defesa circular entre especismo e naturalismo normativo de distinções naturais
Por último, alguém poderia defender que, com relação às decisões que atingem humanos, o critério para saber o que devemos fazer deve ser o prejuízo/benefício para os atingidos, e, quando atingem animais não humanos, o critério deve ser o naturalismo normativo de distinções naturais. Essa defesa é circular. Primeiramente, o naturalismo normativo de distinções naturais é trazido à tona como uma tentativa de se justificar o especismo (ou seja, mostrar que o especismo não é arbitrário). Em seguida, depois que se percebe que não existem boas razões para se aderir o naturalismo normativo de distinções naturais, utiliza-se o especismo para se defender a ideia de que devemos rejeitar o naturalismo normativo de distinções naturais apenas quando os humanos são as vítimas. Ou seja, tipicamente, uma conclusão especista. Mas, o que poderia sustentar o especismo? Não pode ser o naturalismo normativo de distinções naturais, já que ele próprio surgiu em cena para tentar (sem sucesso) dar sustentação ao especismo. Assim sendo, tal argumento é circular porque assume de antemão o que deveria provar: a validade do especismo:
Para ler mais:
MURCHO, Desidério. O Anti-racista Racista. Disponível em:http://criticanarede.com/racismo.html
SINGER, P. Ética Prática. 3a edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, capítulo 2.

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