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Pernas, pernil e o prazer

23 de agosto de 2013
11 min. de leitura
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Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Na noite do dia 16 de agosto de 2013, editei e compartilhei no meu perfil do Facebook a imagem acima. Ainda que explicativa por si só, trata-se de pernas e nossas diferentes visões do mesmo tipo de membro, variando a espécie do animal dotado do membro e a finalidade empregada. Junto da imagem, escrevi o seguinte trecho: “Comparar para apelar ao nojo não é o foco. Até porque respeitamos interesses alheios por reconhecer a relevância e a existência de tais interesses nos outros, e não porque desrespeitar tais interesses seria nojento. A questão é: seríamos o tipo de gente que, ao colocar o egoísmo acima de tudo, precisa ser forçada a não desrespeitar interesses relevantes, independente de quem é o portador de tais interesses?”

Não pretendo desenvolver agora a grande quantidade de questões implicadas nesse tipo de abordagem com “imagens fortes”. Nem tenho conhecimento para isso. Também, não vou detalhar outras intenções embutidas no trecho acima em questão. Ainda assim, como pista para o que chamei de “outras intenções do trecho acima”, serei mais um [1] a sugerir esse texto [2] (em inglês) como capaz de revelar algumas dessas intenções e a importância disso dentro do movimento anti-especista.

Vou procurar tratar de duas repercussões que surgiram em comentários na própria postagem, apesar da natureza duvidosa de tais comentários.

Num dos comentários, foi levantada a possibilidade de as pernas humanas ficarem deliciosas se marinadas e defumadas. Num nível descritivo, acho que teríamos razões para acreditar que ficariam saborosas para quem sente prazer gustativo com carnes marinadas e defumadas. Talvez com algumas nuances diferentes, que poderiam ser corrigidas com temperos específicos e outras adaptações na forma de preparo. Nada longe do alcance de algum bom cozinheiro.

A grande questão aqui seria romper o tabu de apreciar cortes e preparados tradicionais com o diferencial de serem provenientes de humanos. E de como fazer isso de forma ética, já que não desejamos para nós o inferno que impomos aos outros animais, desde o nascimento deles até o momento da degola. Sabemos que com os outros animais não existe ética alguma, mas abusos e perversidades de todos os tipos.

Mas vamos entrar na brincadeira e supor que fosse diferente no caso de humanos, como sugerido no comentário (digo brincadeira porque não estou defendendo o consumo de carne humana, mas realizando um exercício hipotético e questionando se seria mesmo um absurdo esse consumo).

Vamos supor que numa sociedade onde esse tabu de comer carne humana já estivesse sido ultrapassado (que fosse padrão comer carne humana; que fosse um valor, cultura e tradição fazer isso e que fosse seguro o consumo) e que cada cidadão fosse livre não apenas para se declarar como doador de órgãos para fins de salvação na medicina (modelo que temos hoje), mas também para se declarar como doador de carne para fins comestíveis.

Em algumas estimativas [3], só nos casos de acidentes de trânsito no ano de 2010 teríamos um potencial de cerca de 2.842.700 quilos de carne humana geradas só nesse tipo de sinistro (considerando a estimativa de 40.610 mortes naquele ano; e supondo que cada indivíduo pesasse cerca de 70 quilos e que todos fossem doadores de carne e membros para fins gastronômicos diversos; e imaginando que a carne pudesse ser em tempo desossada e acondicionada de forma higiênica e segura, coisa que parece difícil nos casos de acidentes de trânsito, mas não para casos de óbitos em lugares controlados como hospitais – que provavelmente são mais exigidos e inspecionados que os frigoríficos de onde outras mortes são encomendadas em rotativa infindável).

Entretanto, aqui poderia se encaixar um argumento da ladeira escorregadia, supondo que evoluíssemos para esse modelo de sociedade onde comer mais esse tipo de carne (carne humana) fosse amplamente aceitável dentro dos limites éticos acima sugeridos: vai que grupos criminosos resolvessem fazer com vulneráveis humanos o mesmo que já fazemos com os vulneráveis animais em nome do lucro ou para satisfazer desejos banais e passageiros como os do paladar? Vai que a corrupção generalizada e o assassinato de inocentes com fins lucrativos e egocêntricos se instalasse dentro da comunidade humana num nível culinário, aos moldes que fazemos com os animais?

Talvez esse argumento da ladeira escorregadia seja importante para não fomentarmos esse tipo de quebra de tabu. Não suportamos imaginar em nós o mesmo desespero imputado ao animal que é forçado a percorrer o caminho de sua gaiola/prisão ao matadouro grotesco. De todo modo, esse argumento de ladeira escorregadia é plenamente enquadrado também na questão da doação de órgãos. Deveríamos incentivar o fim das doações de órgãos para que crimes contra inocentes não ocorram ou devemos aumentar a educação e vigilância sobre o respeito e consideração de interesses semelhantes?

Já no outro comentário, através do sentido e do vocabulário usado, percebi uma mistura de reacionarismo com o incômodo de um reacionário ter que notar intuitivamente que a comparação entre pernas de espécies diversas é válida. Pelo desconforto de notar essa validade na comparação, e pela carência e falência dos argumentos que pensava ter (o que pensava ter como argumento não passava de irracionalidade e preconceito), a saída desse foi apelar ao ad hominem [1]. No entanto, esse ataque pessoal não foi de todo vazio. Por acidente, trouxe uma questão intrigante e, muitas vezes, desagradável se assumida da forma errada.

No ataque, entendi que foi dito que as pessoas que propagam essas imagens chocantes para alcançar e influenciar outras pessoas que não tem a mesma percepção dos propagadores no fundo sentiriam muito prazer em fazer uso de tais imagens. Seriam dependentes de tais imagens tão horríveis em busca do prazer. Creio que, por acaso, acabou apontando uma questão profunda e tão inevitável quanto certeira, ainda que de forma atrapalhada. Mais uma vez, preciso deixar claro que estou estabelecendo uma conversa interna e com o leitor (que pode se manifestar nos comentários aqui da página), pois não tenho as qualidades plenas para tratar esse tema que é multidisciplinar e bem enraizado em outros. E, no momento que escrevo, não estou puxando muitas referências externas.

Mas antes de seguir, é importante salientar que esse tipo de reacionarismo em ver uma perna humana esfolada ao lado de uma perna animal esfolada se dá pela conjugação de diversos fatores. São confusões diversas somadas ao preconceito baseado em critérios irrelevantes para se avaliar o que está em jogo. Nesse caso, o que está em jogo é a capacidade de um ser poder ser beneficiado ou prejudicado. O que está em jogo é ser portador dessa capacidade, independente da espécie animal que o portador dessas capacidades pertença.

Normalmente, quando alguém se ofende com tais comparações é porque supõe que os seres humanos são seres superiores e que os demais animais são tão insignificantes que não merecem qualquer consideração em comparação com as considerações que exigimos para nós. A má noticia para quem pensa assim é que está enganado e está dando continuidade à um preconceito tão irracional e perverso (o preconceito do especismo) quanto aqueles que dão seguimento aos preconceitos semelhantes com gays, nordestinos, negros, judeus, mulheres etc. Estão imersos numa irracionalidade e confusão gigantesca. Não vou me prolongar aqui, e recomendo a leitura do texto [4] “Porque temos o dever de dar igual consideração aos animais não-humanos e as implicações práticas desse dever” para mais esclarecimentos sobre isso.

Retornando, quando foi dito de forma pejorativa que no fundo sentiríamos muito prazer em fazer uso de imagens com sofrimento exposto e que seríamos dependentes de tais imagens tão horríveis em busca do prazer, isso, acidentalmente, não foi de todo errado, mas ainda assim bem equivocado.

Penso que esse assunto está relacionado com as contradições internas do conceito de altruísmo, com conteúdos por trás de frases como “fazer o bem faz bem”, pela dependência dos opostos na configuração de uma identidade (bem x mal; claro x escuro etc), no tema da comiseração/autocomiseração (sentir dó, piedade, pena de outros ou de si mesmo) entre outros.

Tenho a impressão que, assim como no caso da vaidade [5], certas características nossas são praticamente inescapáveis (alguns autores defendem que tudo é vaidade e uma questão seria de como canalizar essa vaidade para gerar boas consequências também para outros). Buscamos sempre o prazer, e essa busca pode se manifestar das maneiras mais aparentemente contraditórias (como no caso do masoquismo).

Muitas vezes, desde que não sejamos nós as vítimas afetadas diretamente, algumas pessoas sentem um certo tipo prazer em sentir pena (comiseração) de alguém em situação angustiante. Ao mesmo tempo que reconhecemos a desgraça alheia, por meio de uma empatia enviesada, sentimos uma forma de alívio de não sermos nós em tal situação ruim ao mesmo tempo que desejamos que quem está na pior situação possa superar isso. O mais estranho é que, para muitos de nós, assistir de camarote um evento negativo (ainda que assistindo com boas intenções) pode acabar sendo algo prazeroso por despertar um sentimento de piedade, de sentir que se é alguém do tipo que gostaria que aquilo de ruim terminasse. É a inevitabilidade do contraste.

Numa sociedade do espetáculo, não é por acaso que no cinema as tramas de romance mal vividos causam tanta emoção, que os filmes apocalípticos são extremamente desejados, que os noticiários com tragédias tem os mais altos picos de audiência, que relembrar desamores são mais performáticos na frente de um espelho onde se pode ver o próprio choro, que ajudar ou salvar alguém de situação catastrófica mobiliza multidões e exemplos não faltam. Parece ser a paradoxal condição humana.

Entretanto, fazemos uso de imagens retratando situações extremamente negativas em campanhas contra os malefícios do cigarro, nos casos de acidentes de trânsito, nos abusos e agressões contra crianças e mulheres e também para denunciar os maus-tratos contra alguns animais (normalmente cães e gatos) que são tão iguais quanto os outros que estão agora na linha de desmontagem tendo suas patas amputadas antes do couro ser puxado por uma máquina ou antes de virar a picanha ou qualquer outro nome comestível.

Seriam todos esses outros também escravos do prazer em compartilhar tanta coisa negativa ou teriam alguma razão mais louvável em fazer uso de tais métodos em suas campanhas e objetivos? Ou esse fardo pesado  de ser “escravo do prazer em compartilhar coisa negativa” é restrito apenas àqueles que estão a denunciar os crimes, ainda enormemente invisíveis, que são cometidos contra os animais tais como aquele da perna temperada na foto lá no topo?

Mas temos de lembrar que o depoimento reacionário não foi de todo errado (como vimos acima), mas ainda assim bem equivocado. E qual a razão para afirmar que o depoimento que julguei como reacionário foi bem equivocado? A razão é que existe um grande abismo entre sentir prazer e se sentir dignificado por querer o bem e lutar por isso, ainda que isto dependa do inevitável contraste entre “bem e mal”, e que dependa de presenciar o mal e expor isso tal como ocorre na realidade, em contraste com sentir prazer em querer o que é ruim (o pior) para quem sofre, por simples egoísmo e descaso pelo outro, algo muito próximo da sociopatia ou psicopatia.

Para deixar isso bem claro, sugiro o seguinte experimento mental:

Uma vaca está prestes a ser assassinada. No local do crime, temos três tipos de pessoas (poderiam ter outros tipos, mas vou indicar apenas esses três). (1) os que estão a salivar, ansiosos que a vaca seja logo assassinada, desmembrada e assada para que possam sentir o prazer de comê-la, independente das alternativas existentes de alimentação e cientes do mal que isso significa para a vaca e ignorando isso por puro egoísmo; (2) outros que por clara ignorância inocente e repetição cega de costumes aguardam o mesmo destino da vaca (alguns até com desconforto pelo fato de a vaca ser assassinada, mas mesmo assim muito dependentes do paladar); e (3) aqueles que estão em agonia, querendo salvar a vaca, talvez sentindo um tipo de prazer em poder fazer isso por saber que os interesses da vaca são tão relevantes quantos os seus próprios interesses em não ter sua vida abreviada nem de serem submetidos ao sofrimento de ter seu corpo cortado por lâminas afiadas. Talvez o tipo (3) não venha a ter sucesso dessa vez, mas eles farão registros fotográficos da cena hedionda, e sentirão um tipo de prazer (possivelmente um tipo de prazer derivado de um dever moral ou missão) em saber que poderão mudar a forma de outras pessoas pensarem sobre a inocência e vulnerabilidade alheia mostrando isso publicamente. Poderão, quem sabe, mudar o destino de outros inocentes expondo o crime através das imagens captadas, textos educativos e com o uso de outras táticas. Os do primeiro grupo (os egoístas) vão acusá-los de sádicos por fazerem uso de imagens terríveis e darem sentido às suas vidas por meio desses recursos controversos. Mas quem seriam os sádicos de verdade?

* Agradeço à Adelina Maria Schu Zabka e ao Emanuel Zabka pelas críticas e sugestões.

Referências:

[1] https://www.anda.jor.br/10/12/2012/o-uso-de-estrategias-ad-hominem-para-continuar-a-se-desrespeitar-os-animais-nao-humanos

[2] http://fortheabolitionofveganism.blogspot.ch/

[3] http://www.dpvatsegurodotransito.com.br/noticia2.aspx

[4] http://www.olharanimal.net/olharanimal/luciano-cunha/1603-porque-temos-o-dever-de-dar-igual-consideracao-aos-animais-nao-humanos-e-as-implicacoes-praticas-desse-dever

[5] Gikovate, Flávio. A liberdade possível. São Paulo: MG Editores Associados, 2006.

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