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Aves canoras

23 de fevereiro de 2016
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Não sei exatamente porque a música, talvez mais do que a poesia, acompanha a gente por toda vida, variando de acordo com o momento vivido e a nossa autoconsciência. Sem querer ser saudosista, digo que as canções daquela época inocente embalada por conjuntos como Light Reflections, The Hollies, Wings, Novos Baianos ou Boca Livre nunca se apagaram em mim. Mais que isso, elas tornaram-se parte da minha educação sentimental e por vezes retornam para dizer, como fez Borges na maturidade dos anos, que “somos nosso passado”.
Fico a pensar com meus botões se os animais têm a mesma capacidade humana de apreciar a música. Segundo Vitus Dröscher, estudioso do comportamento animal, alguns pássaros são mais musicais do que o homem. Não se trata apenas de simples imitação de sons, especialidade de araras e papagaios em reproduzir melodias na escala de dó maior, mas de conseguir entoar cantos ritmados e extremamente afinados, a exemplo dos sabiás, rouxinóis, canários, curiós, bem-te-vis e cotovias. Esse dom parece ultrapassar e muito a justificativa da função reprodutora ou territorial das criaturas aladas.
Um pássaro canoro, para o referido etólogo, atinge o máximo de seu virtuosismo vocal em uma situação biológica e estado de espírito semelhantes a do homem, que necessita de equilíbrio interior para exercer sua criatividade em forma de arte ou entretenimento. Canto e musicalidade, portanto, não são privilégios da espécie dominante, lembrando que as reações acústicas e o poder de percepção musical de certas aves que aqui gorjeiam podem de longe superar as nossas.
Triste, porém, é constatar que muitas aves da liberdade acabam presas em gaiolas, trancafiadas em si ou consideradas somente em função da beleza do canto. Um pássaro de doce melancolia, Manuel Bandeira, já se comparara em versos à andorilha que passou a tarde à toa, à toa: “Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! / Passei a vida à toa, à toa…”. Noutro belo vôo poético seu, ele se lançou à utopia: “Vou-me embora para Pasárgada / Aqui eu não sou feliz”.
Mescla de homens e pássaros foi o que se viu nos idos de 1973, quando os Secos & Molhados notaram que “Nos fios tensos da pauta de metal / As andorinhas gritam por falta de uma clave de sol… “, para então cantar rosas radioativas e flores astrais Na mesma época, no Brasil, mais um genial ser alado compôs seu vigoroso lamento lado B ao dizer que “Não adianta / Não adianta o bonde, a esperança / E nem voltar um dia a ser criança / O sonho acabou”. Proscrito numa imposta marginalidade pelos gaviões sociáveis que não lhe deixaram botar o bloco na rua, o extinto melro da inquietação humana, Sérgio Sampaio, muita falta nos faz.
Outra ave fugidia, filha dos ventos ingleses das grandes tradições musicais, apareceu ao mundo com a canção “Teach me Tonight”. É impressionante ver sua possante voz contralto a sair dum corpo de passarinho frágil. Depois vieram os clássicos que todos puderam conhecer: “Back to Black”, “Love is a Losing Game” e “Wake Up Alone”. Mas qual animal em fuga, a ave cantadora que se chamava Amy Winehouse foi abatida em pleno vôo pelas mãos armadas do preconceito e da intolerância. Restaram suas canções incompreendidas e o lamento de alguns que viam nela algo mais do que uma simples promessa.

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