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E se eu latir?

21 de março de 2016
4 min. de leitura
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Divulgação
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Um porquinho ainda filhote olha para você e a legenda tem uma pergunta: “e se eu latir você poupa minha vida”? Ele está no chão e olha para o alto, numa indicação de que sua posição é de vulnerabilidade e dependência em relação a você, único que pode atender o seu pedido: “poupe minha vida”.
O post da instituição Mercy for animals deixa uma indagação constrangedora, a começar pelo nome da instituição. Misericórdia não é um gesto apropriado apenas entre os membros de uma mesma espécie? Vamos em frente!
O constrangimento talvez advenha do fato de nos levar a pensar em coisas que nunca precisamos pensar. Desvio silenciosamente o olhar e faço como se não fosse comigo? Dou uma risadinha e acho engraçadinho? Busco “na turma” a validação ou o consenso social para a minha indiferença e mudo de assunto?
Se somente hoje a pergunta nos constrange, é que, ao longo de nossa história, condições foram sendo construídas para que este momento chegasse. Estudos do campo da ética, bioética, da neurociência (Manifesto de Cambridge), passando pelo direito, fisiologia animal etc. trazem à tona o “inconveniente” de que o animal em questão não é um objeto inerte, mas “sujeito de uma vida”, expressão de Tom Regan, filósofo e reconhecido como um dos maiores nomes da Bioética.
Contraditoriamente, essas questões ganham espaço exatamente neste tempo em que o animal é largamente ofertado como produto para consumo. Tudo dele se aproveita. A indústria nunca esteve tão acelerada e inovadora. Com a tecnologia ao seu lado, a vida do animal sofreu todos os tipos de interferência, desde as inseminações artificiais ininterruptas, confinamento, intervenção na dieta e aceleração do desenvolvimento e antecipação do abate. Este ciclo é, antes de mais nada, desumano, invasivo, cruel e desconsidera os ritmos, os tempos, as necessidades e as relações que os animais estabelecem com suas crias ou pares. A única coisa que interessa é o lucro alimentado pelo ávido mercado de consumidores, leia-se “nós”. O feio, sujo e horrendo dos bastidores são silenciados, escondidos e abafados. Como figura principal é-nos apresentado o franguinho saltitante indo para a panela, o peru cantarolando música de Natal, a vaquinha mimosa no cenário campestre, o “boi feliz” e outros soníferos que nos anestesiam e entorpecem.
Tomar conhecimento daquilo que acontece nos bastidores da indústria da carne nos torna corresponsáveis. Não somos nós que acionamos o gatilho, não temos “matadouros”, nem somos fazendeiros, entretanto autorizamos que façam isso por nós. Podemos sim poupar a vida deste porquinho e frear a intrepidez desta indústria, utilizando unicamente o nosso garfo. Se hoje não há loja que vende máquina de datilografia, é porque não há mais consumidores. Assim funciona o mercado.
O fato de sermos onívoros já indica que podemos escolher aquilo que iremos ingerir. Se encontramos todos os nutrientes de que necessitamos para nossa saúde nos alimentos de origem vegetal, é sinal que esta via precisa ser considerada. Não somos determinados a ingerir produtos de origem animal, é opcional. Se o fazemos, é porque “achamos gostoso”, por hábito (desde que nasci!), costume (sempre foi assim!), tradição (minha avó fazia assim!), cultura (comida mineira, baiana etc.) ou social (todo mundo come assim, ou se eu não comer, fica chato!). São inúmeras as razões, contudo nunca podemos dizer que “temos que comer”.
Somos atormentados por sermos “Homo eligens”, o homem que escolhe. Não há como delegar a tomada de decisão a um terceiro. Cada um faz a sua escolha. Infelizmente o conforto de ouvirmos que seguimos a cadeia alimentar, ou que precisamos para nossa sobrevivência, não mais se sustenta.
Tenho plena consciência de que o processo de mudança é longo para grande parte das pessoas. Não se toma tal decisão no calor da emoção. Respeito profundamente estes tempos, afinal, levei três anos pesquisando sobre o assunto e fazendo a transição. Foi preciso “desaprender” muitas coisas erradas que aprendi, desapegar de alguns hábitos e inventar outros. Isto é mais fácil, gratificante e prazeroso do que pensamos. Milhares de pessoas no mundo estão nesta mesma rota e compartilham belas experiências.
Por fim, No livro Cegueira Moral, de Zigmunt Bauman, ele retoma uma velha história que diz que “machados podem ser usados para cortar lenha ou decepar cabeças. A escolha não é dos machados, mas de quem os segura”. Se pensarmos que temos o machado em nossas mãos, podemos chamar para nós a autoria dessa mudança e colocarmos o mercado a nosso serviço e não sermos o seu escravo.
 

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