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Os que matam e morrem aos poucos

21 de fevereiro de 2017
10 min. de leitura
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Por Martha Follain

“Se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos” – Paul McCartney

“Sofrimento é sofrimento, não importa como você o provoque”- Paul McCartney
“Não existe abate humanitário quando o próximo a morrer é você” – Hugo Fagundes

Carne pendurada no refrigerador de uma unidade de processamento (Foto: www.oeco.org.br)

O termo “abate humanitário” segundo Instrução Normativa nº 3, de 17 de Janeiro de 2000 do “Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento”, Brasil, é o conjunto de diretrizes técnicas e científicas que “garantam o bem estar dos animais desde a recepção até a operação de sangria”. Ora, não pode haver “bem estar” quando se está caminhando para a morte e nenhuma matança é “humanitária”. São duas palavras antagônicas, “abate” e “humanitário”. A ideia de haver um lugar onde animais são amontoados para morrer e depois serem consumidos é em si, antiética. Esses animais têm uma existência miserável, sem luz do sol, privados de ar fresco, pisando no chão de concreto ou gaiolas. Os processos são atrozes, bárbaros, pois é “necessário” lucro máximo, explorando esses animais do nascimento ao abate, sem levar em consideração o que os animais sentem e que neles há vida.
O abate de vacas e bois é hediondo. São animais gentis que não são vistos como seres vivos, e sim como um produto a ser comercializado – carne, leite e laticínios. São transportados em caminhões, das fazendas até o abatedouro e mal podem se manter em pé no trajeto. As fazendas nem sempre são perto do local do abate, então a tortura do transporte pode se prolongar por horas. Os frigoríficos declaram que há uma “insensibilização” (?) dos animais, que é feita por uma pistola pneumática disparada no crânio, perfurando-o com uma lanceta até o cérebro. Depois são pendurados por uma corrente, de cabeça para baixo, por uma pata traseira. Então são sangrados, degolados, estripados e esfolados. De acordo com o professor e biólogo britânico Donald Broom, da “Universidade de Cambridge”, vacas e bois nunca esquecem um rosto ou lugar e mantêm relações individuais, como amizade. Broom registrou que bovinos são tão dóceis que chegam a pular quando estão felizes;
– Bezerros expostos a indizível sofrimento (logo que nascem são separados das mães) e mortos (“vitela”);
– Porcas parem filhotes e vivem suas pobres vidas nas chamadas “celas de gestação”, nas quais seus corpos mal cabem – não podem cuidar dos filhotes, nem podem se mexer antes de serem mortas. Os leitões são cruelmente mutilados, sem anestesia, logo depois de nascerem: as caudas são amputadas e os dentes são cortados para minimizar os ferimentos que possam causar uns aos outros devido ao estresse. Os machos destinados ao consumo são castrados. Não lhes dão quaisquer anestésicos ou analgésicos para aliviar o sofrimento destas amputações extremamente dolorosas. Os porcos crescem de forma antinatural, extremamente rápida (pois são superalimentados e mantidos imóveis), o que provoca lesões e dores constantes. Uma série de antibióticos, hormônios e outros produtos farmacêuticos são colocados na comida e mantém a maioria deles viva até o abate, a despeito das condições de higiene e confinamento em que são mantidos. Geralmente são transportados de forma impiedosa antes de serem mortos. Muitos porcos estão conscientes enquanto suas gargantas são cortadas, apesar da suposta “insensibilização” por choque elétrico;
– Sofrimento e morte de aves (galinhas, perus, gansos etc.), vivendo amontoadas em pequenos espaços imundos (não podem nem abrir as asas), cobertas com as próprias fezes. Através de hormônios essas aves crescem muito em pouco tempo e são incapazes de suportar o próprio peso, muitas vezes sofrendo penosas fraturas que as impedem de andar. A ponta de seus bicos muito sensíveis, é cortada com uma lâmina quente, o que provoca dor lancinante. Seus pés apresentam feridas e lacerações por ficarem confinadas em gaiolas. Em suas rações são misturados antibióticos para não adoecerem e assim aumentar os lucros. Pintinhos machos são triturados vivos e viram ração. Dos gansos são extraídos os fígados doentes pela covarde alimentação excessiva (para “produzirem” o execrável “foie gras”);
– Sofrimento e abate de carneiros (castração a sangue frio), coelhos;
– Sofrimento e morte atroz de equídeos (cavalos, jumentos e burros) – o Brasil exporta carne de cavalo para Europa e Ásia (segundo o jornal Folha de São Paulo de 2017, esse tipo de exportação cresceu 30% em 2015); de acordo com a Humane Society International, os países que mais matam equídeos para consumo são: China, México, Cazaquistão, Rússia Mongólia, França, Espanha, Bélgica, Itália e Holanda;
– Matança de peixes que parecem que nem são considerados animais, pois acabam como uma estatística na pesca comercial como quilos, toneladas;
Sem falar da exploração e sofrimento de vacas na indústria do leite e derivados, etc., etc., etc., etc., etc.. “Qualquer que seja o método, os animais perdem a vida e isso por si só já é cruel” – Sergio Greif
Todos nós, como sociedade, somos responsáveis por várias consequências que se desdobram daí, além da absurda barbárie do abate. A pecuária é responsável pela maioria dos desmatamentos para utilização das terras como pastos e para plantio de soja para alimentar o gado. Há também um gasto astronômico da tão preciosa água potável – segundo a WWF Internacional (World Wide Fund for Nature), um bife de 500 g para ser “produzido” consome 6000 l de água.
De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas) o consumo mundial de carne provoca 40% mais gases responsáveis pelo efeito estufa – metano que vai para a atmosfera provindo dos gases dos ruminantes – isso é mais do que os gases emitidos por combustíveis dos transportes do mundo. O relatório da ONU também afirma que comer carne é uma das maiores contribuições à degradação de terras, escassez de água e poluição do ar e da água.
Somos todos coniventes com essa matança, essa dor, esse insólito sofrimento: apenas fingimos não ver, não ouvir, não saber o que acontece, pois adviria maior culpa. É penoso lidar com a morte dos irmãos de jornada. É muito mais “cômodo” comprar no supermercado uma embalagem “antisséptica”, “plastificada”, do que pensar que aquele pedaço de carne foi um ser senciente que sentia alegria, frustração, dor, medo. Há uma desconexão que leva à insensibilidade. As lanchonetes de fast food, por exemplo, veiculam propaganda inteiramente desconectada dos animais para não fazer refletir sobre a origem ou consequências do que está sendo consumindo.
E o que dizer dos animais humanos que cometem os assassinatos e abusos de animais nos matadouros? Com certeza são muito afetados. O convívio com a brutalidade os torna violentos também. Em artigo publicado pela ANDA (Agência de Notícias de Direitos Animais), segundo pesquisa publicada na revista Society and Animals “as pessoas que trabalham nos matadouros são mais propensas a serem insensíveis ao sofrimento, o que por sua vez pode torná-las mais propensas a serem violentas contra seres humanos”. Quer dizer, funcionários e comunidade são atingidos. É o espectro da violência e morte que paira sobre o local e que são absorvidos pelos que ali trabalham. E quem “paga” o salário desses trabalhadores? Certamente quem come esses animais.
Um levantamento feito em 581 cidades americanas pela Associação Americana de Sociologia, revelou que quanto maior o número de abatedouros numa região, mais brigas, estupros, roubos, violência doméstica e assassinatos acontecem – crimes violentos chegam a crescer 130% (revista Superinteressante – 2008). Um estudo da Universidade de Windsor, Canadá, feito pela criminologista e professora canadense Amy Fitzgerald em 2010, comprovou que crimes violentos aumentam quando um matadouro é instalado. Segundo Fitzgerald, “não é a natureza do trabalho repetitivo e perigoso, mas o ato de matar um animal”, o que causa o aumento da violência. Amy Fitzgerald argumenta que as “comunidades com matadouros têm altos índices de criminalidade porque os trabalhadores estão “dessensibilizados” em relação à violência que cometem e testemunham no trabalho. Esta dessensibilização é então refletida no seu comportamento fora das instalações.”
Os funcionários de matadouros responsáveis pela matança e esquartejamento apresentam mais prejuízos físicos (há trabalhadores que fazem até 18 movimentos com uma faca para desossar coxa e sobrecoxa de frango, em 15 segundos), mentais e psicológicos (por exemplo, depressão, transtorno de estresse pós traumático, abuso de álcool e outras drogas), acima das taxas usuais de outros trabalhos. No Brasil, segundo o Ministério da Previdência Social no abate de aves e suínos, há 3,41 vezes mais trabalhadores com problemas psicológicos do que na média entre todos os demais trabalhadores de outros setores. Segundo levantamento do Ministério do Trabalho, cerca de 90 mil pedidos de afastamento foram registrados por esses trabalhadores entre janeiro de 2009 e setembro de 2011.
O mercado da exploração de carne animal é um dos negócios mais lucrativos do mundo. O Brasil é o maior exportador de carne do planeta e atualmente esse “produto” brasileiro é vendido em mais de 150 países. No país, o trabalho nessa indústria tem maioria de imigrantes haitianos que chegam ao Acre e são enviados para várias regiões do país, geralmente por aceitarem baixos salários ou por, possivelmente, não estarem ainda legalizados, em sua maioria.
Há uma pesquisa da professora Nik Taylor da Universidade Flinder, Austrália, que demonstra que quanto mais a atitude de um animal humano for compassiva com os animais, menores serão seus índices de agressividade. Mas a inversa também é verdadeira: a crueldade com os animais gera violência com os animais humanos. Outro dado curioso desse estudo é que, os níveis de agressividade desses funcionários podem ser até maiores do que os de populações encarceradas. Taylor acrescenta que mulheres são ainda mais agressivas que homens. A especialista enfatiza que é assim porque lida-se com vidas e não com objetos inanimados. A morte, o esquartejamento e o processamento são muito violentos, afetando todos os aspectos da vida e saúde dos trabalhadores desse tipo de indústria.
Um artigo do jornal Texas Observer, EUA, também relata que empregados de matadouros sofrem consequências físicas e psicológicas negativas. Os danos são físicos e mentais (o governo federal americano inspeciona 1100 abatedouros regulares). O texto acrescenta que o trabalhador tem que se desconectar do que está fazendo, infligir sofrimento e morte a animais. Há uma dissonância emocional que pode ocasionar “violência doméstica, isolamento social, ansiedade, abuso de drogas e álcool”. O artigo corrobora o aumento da criminalidade em cidades com abatedouros. “Seja qual for a carne, onde quer que seja vendida e independentemente do que diz o rótulo, cada peça tem uma coisa em comum: há um trabalhador de um matadouro que teve que tirar a vida do animal e ele provavelmente carrega algum nível de trauma emocional.”
Não é raro que trabalhadores de abatedouros larguem o emprego e se tornem veganos. Esse é o caso do australiano Josh Agland, que se sentiu deprimido e aviltado por compactuar com a indústria da morte e percebeu que a própria sociedade, que majoritariamente ainda é carnista, repudia, deprecia e se envergonha daqueles que fazem o trabalho indecente de matar seres inocentes. Atualmente, Josh é um defensor dos direitos animais e é vegano.
Obviamente são necessários outros estudos que possam avaliar mais profundamente o efeito deletério nos empregados e nas cidades que abrigam matadouros. Cada um que come um pedaço de carne é responsável pelo sofrimento excruciante daquele animal. E também é conivente com as condições terríveis, indignas e humilhantes dos trabalhadores responsáveis por seu martírio e morte.
Referências:
https://www.anda.jor.br/03/10/2015/trabalhadores-matadouros-sao-propensos-violencia-estudorências;
https://www.anda.jor.br/25/01/2017/funcionarios-de-matadouros-sofrem-uma-serie-de-transtornos-psicologicos;
https://www.anda.jor.br/13/06/2016/ex-funcionario-de-matadouro-se-torna-vegano-e-defensor-dos-direitos-animais;
https://www.youtube.com/watch?v=g3LvG1e4F1s;
https://www.anda.jor.br/03/02/2016/porcos-torturados-e-assassinados-2;
https://www.anda.jor.br/30/01/2015/veganismo-planeta-viver;
https://www.anda.jor.br/30/08/2013/meu-pintinho-amarelinho;
Sérgio Greif: texto “Visita ao Matadouro” – vegano, biólogo, divulgador do movimento anti vivissecção, é coautor do livro “A Verdadeira Face da Experimentação Animal” e autor do livro “Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação”;
Hugo Fagundes: vegano, designer e fotógrafo – série fotográfica impactante sobre o “abate humanitário”. Projeto fotográfico “Inversão Oculta”, onde foram gastos 300 dias de estudo para a produção do material – durante esse tempo, o equivalente a 4 717 440 000 animais foram mortos para o consumo.
Foto: Hugo Fagundes

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