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Mente animal e tolerância

1 de julho de 2011
13 min. de leitura
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“Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas.  Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum?  Terá nervos para ser insensível?  Não inquines à natureza tão impertinente contradição”.
(Voltaire)

O “maquinista” a que Voltaire se refere na citação acima é René Descartes, que disseminou o conceito de animais como máquinas em meados de 1630. Descartes defendia a tese de que os animais eram meros autômatos, tal como os relógios, “desprovidos da mente e alma” e “incapazes de ter sensações” (Thomas, 2010 p. 43).

A doutrina Cartesiana conseguiu degradar os animais não humanos. E os seguidores de Descartes, no mesmo século, foram ainda mais longe ao afirmar que “os bichos não sentem dor. O gemido de um cão que apanha não constitui prova do sofrimento animal, assim como o som de um órgão não atesta que o instrumento sente dor quando tocado”.

Tomás de Aquino pregava que a chamada “prudência” dos animais não passava de um “instinto implantado por Deus”. O Cartesianismo, ao negar que animais tivessem mente e alma, era conveniente por negar a existência de um Deus capaz de permitir as atrocidades que se cometiam com os animais não humanos. Qualquer visão alternativa que dissesse que os animais realmente sofriam e sentiam inevitavelmente declarava o ser humano culpado e colocava em cheque a absolvição de Deus por permitir tal sofrimento.

Embora pense que seja uma discussão pertinente e necessária, não pretendo aqui, pela brevidade da reflexão, escrever um tratado sobre as diferenças e interfaces entre os termos consciência, emoções, alma e sentimentos nos animais não humanos. Mas colocar em perspectiva as consequências para o movimento animalista abolicionista, da negação dessas faculdades em animais não humanos.

Todos esses termos, embora possuam diferentes significados e conotações, trazem implícita uma afirmação que, por incrível que pareça aos meus olhos e ouvidos biocêntricos, incomoda muitos (ainda) seguidores de Descartes no século atual: a possibilidade de, como espécie humana, sermos colocados no mesmo nível que os animais não humanos com relação a sentimentos e emoções.

Seja alma, mente, sentimentos ou consciência, qualquer termo que ouse equiparar animais não humanos e humanos traz um incômodo generalizado. E torna mais difícil, diria, injustificável, a manutenção da liberdade e da consciência tranquila dos seres humanos ao impor todo o tipo de crueldade aos animas: da diversão (rodeios, rinhas, circos, farra do boi, zoológicos, oceanários) à mesa; da tutela irresponsável à indústria de pele e couro; da vivissecção nas instituições de ensino e na indústria ao uso de animais de tração.

Em meu artigo sobre Zoológicos, publicado aqui na ANDA,  me referi ao Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago (“cegos que vendo, não veem”). Faço, aqui, menção novamente, sobre a cegueira coletiva (ou seletiva?) que dificulta uma discussão mais profunda sobre a mente dos animais, nos setores citados acima.

Vejam o paradoxo: por um lado, as pessoas negam a existência de sentimentos entre os animais. Por outro, há o favorecimento da cultura do “não quero saber” e do “não quero ver” quando se diz respeito às crueldades imputadas pelo ser humano, aos animais.

À exceção dos sádicos, a maioria das pessoas é tomada por um certo pânico na iminência de presenciar cenas de barbárie animal, seja em um documentário, ou em outra situação. Viram o rosto. Isso constitui uma das provas contundentes da existência de identificação imediata com o animal que sofre, através de se colocar no lugar do outro.

São verdades dolorosas de se ver, porém, verdades. Mais dolorosas ainda se atribuírmos aos animais o que a Ciência nega: sentimentos, consciência, mente. A negação de uma mente nega também que os animais têm direitos e são “sujeitos de uma vida” (Regan, 2007).  É por isso que acredito na missão dos abolicionistas que é, segundo Regan, “tornar visível o invisível”. O autor afirma, ainda, que o reconhecimento dos direitos animais traz em seu bojo uma implicação simples e profunda: simples, porque diz que os animais devem ser tratados com respeito. E profunda porque as consequências desse respeito acarretam modificações amplas no mundo em que vivemos:

“Vamos ter que parar de criá-los por causa de sua carne
Vamos ter que parar de matá-los por causa de sua pele
Vamos ter de parar de treiná-los para que nos divirtam
Vamos ter de parar de usá-los em pesquisas científicas”
(Regan, 2006 p. 12)

Essa discussão tem a ver com a capacidade de aceitar que somos diferentes, não superiores aos demais animais. Um paradigma a ser superado, principalmente pela Ciência tradicional (ou convencional para os moldes especistas). E essa discussão, para que avance e seja significativa, precisa ser feita embasada em muita leitura, aprofundamento e também muita tolerância.

Não me refiro à tolerância que se assemelha à indulgência que um indivíduo deve ter para com outro. Não acredito que quem tolera presta um favor ao tolerado, como que perdoando sua inferioridade e ignorância. Entendida dessa forma, a tolerância implica uma condição superior especista, racista, sexista, social, intelectual etc. do tolerante, pois, nessa concepção, o tolerado pode ou deve ser grato a quem o tolera.

Para explicitar melhor o uso que faço da palavra tolerância, recorro a Paulo Freire. O educador diz que “ninguém é verdadeiramente tolerante se se admite o direito de dizer do outro: o máximo que posso fazer é tolerá-lo, aguenta-lo” (Freire, 1997, p. 24). Se nos falta essa concepção de tolerância, acabamos por nos tornar algozes do especismo e do preconceito.

Para Paulo Freire, a tolerância verdadeira não é condescendência nem favor que o tolerante faz ao tolerado. E que ainda, na tolerância verdadeira, não há tolerante, nem tolerado: ambos se toleram.

Ao escrever esse texto, me vêm à mente duas faces da tolerância no sentido freiriano, extremamente necessárias para a manutenção e o avanço da causa animalista abolicionista: uma, da tolerância que precisamos demonstrar cotidianamente a fim de manter nossa postura abolicionista frente a argumentos e atitudes especistas eletivas e elitistas. E outra, relacionada à tolerância necessária ao meio acadêmico e não acadêmico como instrumento de aceitação e reconhecimento de animais não humanos como seres dotados de mente e emoções. Ambas trazem implícita a ideia da aceitação do diferente. Desenvolverei um pouquinho, cada uma delas:

– Da tolerância às posições contrárias ao abolicionismo: Tom Regan menciona as três principais razões que afastam as pessoas do movimento animalista devido à imagem negativa que suscitam: certeza exagerada da própria virtude, apelações de mau gosto e ativismo irresponsável (Regan, 2006, p. 07). Tom deixa claro que tais atitudes existem, dentro do movimento animalista, mas são a minoria. Não vou me deter a pormenorizar cada uma delas, mas na minha interpretação, consigo relacionar essas causas elencadas por Regan à tolerância freiriana. Não nos faltam exemplos em nosso cotidiano para ilustrar o quanto temos que ser tolerantes com pessoas desinformadas e até agressivas ao colocar um ponto de vista diferente do nosso. Argumentos insustentáveis que fazem o sangue ferver, mas, às vezes, a voz silenciar diante de concepções arraigadas e esculpidas pelo antropocentrismo. Respeito. E penso: “game over”, “caso perdido”. E torço para que essa pessoa não tenha muito poder, nem muito dinheiro porque, quando aliados à ignorância, formam a mistura mais bombástica que existe.

Por outro lado, Paulo Freire nos socorre e tranqüiliza: sermos tolerantes não implica em sermos “bonzinhos e condescendentes”. Não implica, em nenhum momento, concordar com o ponto de vista do tolerado. Tão pouco esse tipo de tolerância não nos pede que estimemos ou sejamos estimados.

– Da tolerância sobre a igualdade das emoções entre animais humanos e não humanos:

Esta coluna chama-se Consciência Animal por tal expressão abarcar alguns significados. E claro, o leitor é convidado a somar com outras interpretações.

Um deles diz respeito à nossa consciência, enquanto animais humanos responsáveis por escolhas que tem e terão sempre conseqüências sobre uma série de outros seres. A expressão “Consciência Animal” nos chama à responsabilidade e da nossa consciência, portanto, para com as demais espécies.

Outro significado pode remeter à grandiosidade e à nobreza que a palavra “animal” traduz (para mim). É necessário uma Consciência “animal” para reconhecer que os animais não humanos também têm sentimentos, no seu contexto, iguais aos nossos.

E um terceiro significado, diz respeito à Consciência Animal mesmo, dos animais não humanos. Diz respeito a um assunto que tenho me debruçado com um pouco mais de atenção ultimamente: a negação da existência de consciência em animais não humanos por parte da Ciência convencional/tradicional.

Não sou ingênua ao ponto de acreditar que “descobrir” que os animais possuem uma cultura própria e uma mente que raciocina, decide, decodifica sentimentos como raiva, medo, empatia, frustração, carinho e outras, seja um freio às barbáries cometidas contra eles nas indústrias, na academia, e na sociedade em geral.

Em todos os segmentos, essa negação me incomoda. Mas na Ciência me incomoda mais, porque enquanto instância não neutra de formação de opinião, informação e produção do conhecimento, tem enorme responsabilidade na disseminação de conceitos especistas e no desencadeamento de ações que promovem um desserviço à causa animalista.

A mídia e a indústria também compõe o cartel da exploração. Mas essas, pelo viés econômico. Essas duas instâncias, também são alvos mais vulneráveis a questionamentos. Mas, quem ousa questionar a “Ciência”? Sobre isso, Jane Goodall (1990), primeira pesquisadora a estudar o comportamento animal em habitat natural e dar nomes aos seus primatas, argumenta muito bem:

Se vemos um velho burro puxando uma carroça abarrotada, e um camponês acoitando-o, forçando o animal a levar uma carga muito alem de suas forças, ficamos chocados e nos sentimos ultrajados. No entanto, se um bebê chimpanzé é retirado dos braços de sua mãe, trancado em um laboratório, e nele são injetadas doenças humanas, em nome da Ciência, isso não é considerado crueldade. Em uma última análise, ambos: o burro e o chimpanzé são explorados para o benefício dos humanos. O que faz um mais cruel que outro? Apenas o fato de a Ciência ser venerada, gerando a crença de que os cientistas trabalham para o bem da humanidade, enquanto o camponês é acusado de egoísta por punir um pobre animal para seu benefício.

Refuto, desde sempre e cotidianamente, a tese de que somos diferentes no campo das emoções. Antes, por intuição. Agora, com respaldo científico.

Frans de Waal é estudioso dos primatas e confere a estes faculdades emocionais como aos animais humanos. Em Minding Animals,  (Bekoff, 2002, p. 102) nos brinda com uma pérola: “às vezes eu leio sobre alguém dizendo com grande autoridade que os animais não tem intenções nem sentimentos e pergunto: esse garoto nunca teve um cachorro”?  .

Infelizmente a Ciência que reconhece os animais como seres dotados de consciência ainda é incipiente no Brasil, por parte de Biólogos/pesquisadores. Basta uma consulta aos principais artigos sobre o tema, para constatar que as principais produções voltadas para essa área, dizem respeito a estudos comportamentais envolvendo privação de alimento, de cuidados maternos e outras atrocidades cometidas “em nome da Ciência”. A maioria esmagadora dos biólogos, etólogos e outros que estudam a mente animal, tem seus estudos voltados para o pesquisas questionáveis sob meu ponto de vista biocêntrico. E outra afirmação que sustento, apesar dos olhares de reprovação ou do chacoalhar de cabeça semelhante ao de um médico que “desengana” um paciente: pesquisas desnecessárias, que em nada contribuem para ninguém (a não ser para manter verbas de pesquisa). Se a intencionalidade de tais pesquisas é gerar dados acerca da mente animal, tais dados são facilmente refutáveis pelo simples fato de o comportamento em cativeiro ser bem diverso daquele que o animal apresentaria em seu meio natural. Coerente seria então, colocar as neuroses de cativeiro como resultados da pesquisa. Mas isso dá outra discussão.

Como Bióloga, tive uma formação antropocêntrica, cartesiana e especista.. Tive e tenho que recorrer constantemente a outras áreas como Filosofia, História, Sociologia, Etologia e etc., para dar entender questões dentro do Abolicionismo animal, que a Biologia, por si, não esclarece. E refutar alguns argumentos. Um dos motivos que me lava a recorrer a outros campos de conhecimento, é a especificidade da área de Ciências Biológicas. Outro motivo deve-se às limitações teóricas sobre Biocentrismo que meus colegas de profissão, salvo raras exceções, em sua maioria, não conhecem, nem querem discutir, muito menos produzir intelectualmente a respeito. Estes permanecem endossando (e endeusando) a Ciência tradicional.

Por essas e outras, pretendo desenvolver aqui, nesta coluna, entremeadas por outras temáticas, algumas reflexões com base em pesquisadores que vem se dedicando exaustivamente ao estudo da mente e das emoções dos animais não humanos em seu habitat natural e os colocar em pé de igualdade conosco, animais humanos.

Tais pesquisadores dedicam-se também a refutar a ciência tradicional cartesiana, especista, antropocêntrica, cruel. Entre eles, Frans de Waal e Jane Goodall com seus estudos sobre a mente e o comportamento dos primatas e outros animais, Marc Bekoff e Jeffrey Moussaieff, sobre as emoções nos animais (Moussaieff já foi brilhantemente resenhado pelos parceiros do GEDA aqui na ANDA: https://www.anda.jor.br/2011/05/28/emocoes-nos-animais-uma-ponte-para-a-etica/), Tom Regan, Julian Huxley, Keith Thomas, Irene Pepperberg, entre outros. Cada um a seu modo, respaldam e inspiram nossas concepções.

Acredito muito na Era da Empatia, de Frans de Waal, que desmonta os argumentos especistas e reinterpreta a Teoria da Evolução sob a perspectiva das mentes de animais não humanos. Acredito na força dos argumentos biocêntricos e anti-especistas para avançar na quebra da supremacia dessa Ciência que tem deformado mentes de animais humanos e não humanos. Estes, últimos, à sua revelia.

Para encerrar, parafraseio Jane Goodall, com o objetivo de deixar uma reflexão: se a atual Ciência diz que não há argumentos que provem a existência de mente e emoções nos animais não humanos, tão pouco ela apresenta argumentos para provar que eles não as tem.

E uma observação que, espero, não comprometa o conceito de tolerância que reinterpretei à luz do Abolicionismo Animal: Paulo Freire concebe a tolerância como uma instância exclusiva da existência humana:

só entre mulheres e homens, seres finitos e conscientes de sua finitude, seres que, por natureza, são substantivamente iguais, é que se pode falar em tolerância ou intolerância. Não é possível conjecturar em torno da tolerância entre tigres.
(Freire, 2004, p.24)

Com plena consciência da pequenez do meu discurso diante da grandeza da intelectualidade de Paulo Freire: nesse ponto, com base em tudo o que foi escrito acima sobre a mente dos animais e principalmente no que acredito, sou obrigada a discordar do pensador. Veementemente.

Referências:

BEKOFF, Marc. Minding Animals: awareness, emotions and heart. New York: Oxford University Press, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. Org. Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
GOODALL, J. Through a window: my thitty years with the chimpanzees of Gombe. Boston: Houghton Mifflin, 1990.
MASSON, Jeffrey Moussaieff & MacCARTHY, Susan. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação as plantas e aos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
DICIONÁRIO FILOSÓFICO. O grande Filósofo Voltaire e os animais. São Paulo: Martin Claret, 2004.

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