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Dádiva

17 de maio de 2010
4 min. de leitura
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Ao longo desse ano e meio da coluna “Olhar Literário”, o texto mais significativo que escrevi parece ter sido o menos lido ou apreciado, aquele composto em homenagem à memória de Caio Fernando Abreu: “A morte dos girassóis”.  Ele falava do tempo, da fugacidade do ser, da vida que escoa pelas nossas mãos e da incomensurável interrogação que nos habita a alma. Poderia também se chamar “Crônica do Sol Poente”, voz que se debruçava sobre o poeta dos jardins e das flores. Não sei. Talvez significasse, na realidade, o contrário disso tudo. É porque o texto evocava o sol, a vida, a vontade de recuperar o que se perdeu, a força indestrutível das coisas frágeis.  Mais ainda. A crônica celebrava os girassóis renascidos a cada manhã.

Um ano depois, neste mesmo espaço, eu gostaria de retomar o tema. E desta vez sob outra perspectiva, a do instante. Digo isso porque há alguns anos, já não me lembro quando, eu testemunhei essa imagem única, fugidia e bela. Foram instantes plenos, que apareceram sutilmente em uma tarde de primavera. Há quanto tempo? Já não sei mais. Eu nem estava preparado, nem a esperava, mas a vi. Eu a vi com toda sua sutileza e esplendor, vi sua face serena e inesgotável. Como pétala que se refaz, como estrela que se acende, como névoa que se esparrama, eu a vi. Ela era branca e leve e delicada. Naquele instante eu a percebi e quis retê-la. Em vão procurei eterno sol.  Sobrou-me a memória e nada mais.

Devo então recordar o que se passou. Caminhávamos pela rua, a nossa rua viva, a rua da nossa casa florida, a rua das árvores e dos pássaros. Íamos a pé, minhas filhas ainda pequenas e a vira-lata Coquinha em direção ao jardim da praça central.  Naquela tarde branca, a rua florida parecia respirar. O jardim era vivo e as árvores nos reconheciam.  Um dia que parou no tempo.  Estávamos na praça do jardim, nossa cachorrinha serelepe pelo gramado, quando a nós se juntaram outros amigos caninos – Suri, Billy e Bilinha –, que tantas vezes nos acompanhavam naqueles passeios inesquecíveis. Um dia feliz, em que todos os cães amigos se juntaram em uma tarde branca de primavera. Um dia para não esquecer.

Foi então que, sentado no banco da praça, pude testemunhar o momento em que eu não poderia mais desejar coisa alguma neste mundo. Em meio ao jardim em flor, a alegria das crianças e a bagunça dos cães que subiam em um monte de areia e rolavam, de um lado a outro, para depois saírem em disparada pelo gramado, enfiando-se nos arbustos, chafurdando na terra, brincando de perseguição, mordendo delicadamente uns aos outros. Senti algo sublime naquela cena, um momento perfeito no tempo físico, um instante que gostaria de reter, como pequena dádiva.  Foi então que eu pressenti – ó maldita racionalidade – que aquele momento representava o apogeu, a inocência, a felicidade. Oh tempo, lastima-me e consola-me. Eu havia visto a plenitude nos olhos e nos gestos daqueles seres tão queridos.

Depois, como tudo na vida, isso se perdeu. O tempo passou, as crianças cresceram, mudamos daquela casa.  Tudo se foi. Resta agora a rua morta, com flores extintas e árvores destroçadas.  Os cães amigos, que nos saudavam e corriam pela praça,  nunca mais vimos.  O que terá sido deles? Melhor não perguntar, melhor deixá-los bem guardados na memória dos afetos, melhor ficar com a imagem suspensa daquele dia branco. Billy, Bilinha e Suri – onde quer que estejam – nós os veremos  sempre felizes e companheiros, correndo em um mundo de sonho, em uma tarde branca de primavera, em um belo instante que ficou. Com a alma enternecida, quero encerrar esta crônica transcrevendo um poema de Czeslavo Milovz. Chama-se “Dádiva”:

Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo.
Eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha de pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Endireitando-me,
vi o mar azul
e velas.

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