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Veganismo, vegetarianismo e protovegetarianismo: definições e concepções

20 de maio de 2010
13 min. de leitura
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Introdução

Uma pequena frase chamou a atenção de algumas pessoas no meu último texto. Ela remete, de fato, a um problema prático e conceitual com o qual se defronta qualquer um que deseje refletir sobre a questão animal: a disparidade de pensamento e prática que cerca o movimento dito de “defesa” animal e que, consequentemente, põe em questão a própria definição do que é um defensor dos animais. Dizia ela: “Um ‘defensor’ dos animais que não é vegano não só faz mal a si mesmo, mas igualmente aos animais e à causa”.

O debate acerca do vegetarianismo e do veganismo está paralisado por más concepções e más definições. O progresso da causa em defesa dos animais está refém dessas limitações, pois elas colocam em xeque a própria noção da existência de um “movimento” e de quem o integra. A mais grave definição é aquela que classifica como vegetariana a dieta que inclui alimentos derivados de animais. A mais grave concepção é aquela que vê o veganismo como um fim em si mesmo.

Nesse texto pretendo abordar esses dois problemas. Com ele, pretendo defender basicamente duas hipóteses: primeiro, que não há como separar o vegetarianismo da objeção moral que o motiva, sendo a limitação do vegetarianismo a uma corrente dietética uma invenção contemporânea; segundo, que essa mesma objeção moral é limitada e foi, no presente, escondida por aqueles mesmos que se propunham a difundir o vegetarianismo. A partir dela, chego a duas conclusões: primeiro, que tanto do ponto de vista ético quanto dos pontos de vista lógico e etimológico, portanto, o vegetarianismo não pode ser entendido senão como uma dieta que exclui totalmente os “alimentos” de origem animal; segundo, assim sendo, a dieta vegetariana assim definida não é simplesmente uma “meta”, mas a dimensão dietética do veganismo, que é o único caminho coerente com a objeção moral que dá origem ao vegetarianismo e o ponto de partida para qualquer defensor dos animais.

A dieta e seu fundamento ético

A noção de que a dieta vegetariana é aquela que exclui somente restos de animais mortos é enganosa e incoerente. Segundo o discurso hegemônico, “vegetariano” deriva da raiz em latim “vegetus”, que significa “forte”, “vigoroso”. Assim, o fato de o “vegetariano” ter uma dieta à base de alimentos de origem vegetal seria apenas uma feliz coincidência. Na verdade, “vegetus” também é a raiz etimológica de “vegetal”, não havendo, portanto, como separar uma dieta “vegetariana” da sua base a partir de fontes vegetais.

A extensão do conceito de “vegetariano” às dietas que incluem alimentos que, embora de origem animal, não derivam diretamente da morte de um animal, só pode ter alguma justificativa na tradição histórica. Historicamente, tanto no Oriente como no Ocidente, os adeptos da dieta “vegetariana” abstinham-se apenas dos restos de animais mortos, mas admitiam o consumo do leite e, mais restritamente, dos ovos. Na tradição hindu, por exemplo, o ovo é equivalente à carne, na medida em que representa o embrião de um ser vivo. O leite, contudo, não só não implica a morte, como é símbolo de vida e comunhão – a mãe dá o leite ao seu filho, permitindo que este sobreviva e se desenvolva. Desse modo, na mitologia hindu, a vaca assume a força de uma divindade-mãe, que renova constantemente esse ciclo de vida e comunhão do ser humano.

Assim, chegamos ao primeiro ponto que pretendo salientar: ao analisarmos a existência de uma tradição vegetariana na história da humanidade, partindo das religiões orientais baseadas no princípio da não violência (ahimsa), até a difusão do vegetarianismo no Ocidente a partir do século XIX, não há como escapar da constatação de que todas elas se fundam a partir de uma convicção moral acerca da relação entre seres humanos e animais. Esse próprio substrato moral serviu como justificativa para admitir a inclusão de leite e, em alguns casos, ovos, na dieta (da mesma forma que admite cogumelos, por exemplo, que não são vegetais, mas fungos). E é justamente essa “emenda” no conceito que denuncia a limitação do seu fundamento ético original, como veremos mais adiante.

É fantasioso alegar que é possível separar a dieta vegetariana de um fundamento ético. Mesmo que de forma limitada e antropocêntrica, a objeção ética ao abate de animais esteve sempre na raiz da adoção do vegetarianismo, incluindo aqui as suas motivações espirituais. Apenas em tempos muito recentes, com o avanço dos conhecimentos sobre a nutrição, surgiu essa curiosa figura híbrida e amorfa do “vegetariano pela saúde”.

Essa figura não é apenas recente mas, eu diria, intencionalmente inventada. Na Europa do século XIX o limitado conhecimento sobre nutrição humana requeria, de fato, a preocupação de comprovar a viabilidade de uma dieta vegetariana para a saúde humana. O que é, de fato, totalmente diverso – na verdade, diametralmente oposto – à ideia de que o vegetarianismo é acima de tudo uma corrente dietética. Como pode o vegetarianismo ser antes uma razão de saúde, se até há poucas décadas ainda se levantavam fortes questionamentos sobre sua viabilidade e adequação à saúde humana?

A figura do “vegetariano pela saúde”, portanto, foi criada e instrumentalizada pelos grupos vegetarianos organizados – e aqui me refiro ao papel histórico das Sociedades Vegetarianas ocidentais, desde a primeira delas, fundada na Inglaterra em 1847 – tentando escamotear a motivação que inspira a maioria dos que aderem ao vegetarianismo, e nele persistem. Fantasiando o vegetarianismo de corrente dietética, tentavam assim diminuir a resistência ao debate e conquistar maior legitimidade perante o todo das sociedades.

Os limites da ética vegetariana tradicional

Afirmar a existência de uma tradição ética do vegetarianismo, é bom que se diga, não implica justificá-la. Nenhuma prática valida-se simplesmente pela tradição. Se uma tradição demonstra-se equivocada e limitada, ela deve ser abandonada ou transcendida. E é isso o que, de fato, está em debate: transcender a nossa visão tradicional da relação ser humano/animal não humano, inclusive a tradição do vegetarianismo. A ética vegetariana tradicional permanece refém do antropocentrismo e oferece uma falsa resposta aos dilemas morais da relação entre humanos e animais não humanos. Ela somente sobrevive pelo velamento do próprio dano que ela afirma combater: o abate.

É impossível domesticar e criar animais sem reduzi-los à condição de propriedade, de objeto. E é justamente isso que torna o animal vulnerável a todo tipo de violação dos seus interesses fundamentais, inclusive o interesse à vida. Portanto, qualquer uso de um animal é uma violação de todos os seus interesses fundamentais. O abate é apenas consequência de todo o processo anterior de objetificação. Ao consumir o leite e o ovo, estamos também consumindo a dor, o sangue e a morte dos animais de quem extraímos esses produtos, e das crias que deveriam ser beneficiárias deles. Tomar leite significa uma apropriar-se de uma vaca, forçá-la a procriar artificialmente, separá-la de sua cria, matar a cria e matar a própria vaca, assim como comer ovo significa reproduzir esse mesmo processo com a galinha e o pinto. Esse processo não é uma invenção moderna, embora a sociedade industrial tenha tornado a sua brutalidade intrínseca mais evidente, pois eliminou qualquer mediação mágica e mitológica na relação de exploração ser humano/animal, preservando apenas o seu interesse bruto, potencializando ao extremo toda a violência nele contida. A violência, contudo, está inserida na própria lógica da exploração animal e é inseparável desta.

O discurso pró-vegetarianismo tradicional, não obstante, crê que o único mal está na fase final do processo de exploração, o abate o que, naturalmente, é um absurdo tanto ético quanto lógico. Se os vegetarianos do século XIX estavam limitados pelo contexto histórico a um conhecimento rudimentar da nutrição humana e da ética, os avanços das duas matérias a partir do século XX não mais justificam a preservação dessa concepção retrógrada do vegetarianismo. Assim, ao definir e promover o vegetarianismo como uma dieta que exclui apenas os produtos da morte de um animal, os “vegetarianos” e organizações de promoção do “vegetarianismo” assim definidos estão legitimando diretamente a exploração e também o abate de animais ao qual nominalmente se opõem. São falsos defensores dos animais, falsos profetas. Nos dias de hoje, um indivíduo que assim procede não está sendo apenas incoerente, mas igualmente hipócrita. Não é mais possível, no mundo contemporâneo, ignorar, mascarar ou mitificar o dano que causamos aos animais quando os criamos, mesmo que não para consumi-los diretamente, mas para consumir seus subprodutos.

Vegetarianismo e protovegetarianismo

É pensando nisso que nós, da Sociedade Vegana, aqui no Brasil, pretendemos resgatar o sentido do “vegetarianismo” com o rigor tanto ético quanto etimológico que o conceito requer. O vegetarianismo é uma dieta que exclui todo e qualquer alimento de origem animal, não apenas aquele que derive da morte direta, mas também os demais, que derivam da exploração direta que inevitavelmente também os levará à morte.

Os vegetarianos das épocas anteriores, mesmo que bem intencionados, foram contidos pelas limitações históricas de suas épocas, a limitação de suas concepções éticas, e a limitação de seu conhecimento prático, que hoje está disponível. Por isso, defendemos que eles são “protovegetarianos”, isto é, indivíduos que, inspirados por uma objeção moral ao abate de animais, defenderam a adoção de uma dieta que excluísse apenas os frutos diretos desse abate, sem questionar a instituição da exploração animal e assim, contraditoriamente, legitimando não apenas a exploração, mas também o próprio abate. Eles foram pioneiros, abriram o debate, apontaram caminhos, mas não conseguiram, pelas limitações de seu tempo, oferecer uma solução coerente ao dilema ético que nos apresentaram.

Hoje, os “protovegetarianos”, contudo, são aqueles que ou permanecem na ignorância, ou recusam-se a dar o inevitável passo adiante, se queremos levar a sério o dilema ético que nos impõe a exploração animal. E, nesse processo, contam com a cumplicidade ativa das organizações de suposta promoção do vegetarianismo e bem-estar animal. Ao promover dietas que legitimam o uso de animais, como o “ovolactovegetarianismo” e normas de bem-estar para o uso de animais, essas organizações apenas perpetuam a violência que os seres humanos impõem aos animais não humanos. Nesse contexto, o protovegetarianismo e o bem-estarismo precisam ser enfrentados diretamente como uma falsa solução para o dilema ético da exploração animal.

E, embora do ponto de vista individual, a persistência do protovegetarianismo – uma dieta que ainda admite determinados alimentos de origem animal – possa ser vista como uma fase embrionária e transitória em direção ao vegetarianismo de fato – uma transição que muitos indivíduos jamais irão concluir –, do ponto de vista de um movimento de defesa dos animais, o protovegetarianismo não pode mais ser entendido nem mesmo como um meio para o qual o vegetarianismo é um fim.

Veganismo como meio

O próprio vegetarianismo, redefinido como uma dieta que exclui completamente alimentos de origem animal, baseado quase inteiramente em fontes vegetais, não é uma resposta suficiente para o dilema ético que o motiva. Foi a partir dessa constatação que Donald e Dorothy Watson, ativistas britânicos do século XX, conceberam, em 1944, o conceito de “veganismo”, e fundaram a primeira Sociedade Vegana. Por “veganismo”, eles definiram a prática de abster-se da contribuição direta e voluntária de todas as formas de exploração animal – não só a criação de animais para a produção de alimentos, mas também todas as outras formas de objetificação dos animais, incluindo os outros fins pelos quais animais são criados e reproduzidos, como a experimentação científica, e também a pesca e a caça.

Foi isso que eu quis dizer quando afirmei que “Um ‘defensor’ dos animais que não é vegano não só faz mal a si mesmo, mas igualmente aos animais e à causa”. Pois não se pode, honestamente, ser um defensor da causa animal e contribuir conscientemente para a exploração e objetificação dos animais não humanos.

 Embora nos dias de hoje ser totalmente vegano seja virtualmente impossível, pois todos contribuímos de algum modo para a exploração animal, aqueles que acreditam no dever de respeitar os animais têm o dever de abdicar de toda forma consciente de exploração animal que estiver ao seu alcance. E o vegetarianismo, que é a dimensão dietética do veganismo, é também justamente aquela sobre a qual temos o maior controle no nosso cotidiano e, portanto, o ponto de partida para a construção individual do veganismo.

O próprio veganismo, por sua vez, embora seja uma construção cotidiana, é uma construção que não pode ser adiada e cujo aperfeiçoamento deve ser sempre buscado. Não pode mais ser visto como resultado da abnegação ou “estado da arte” da evolução ética pessoal. Vegetarianismo e veganismo são, ambos, não fins em si mesmos, e portanto “metas” a serem perseguidas ad eternum e pontos de chegada. São, isso sim, pontos de partida, a primeira meta daqueles que se pretendem defensores dos animais – muito mais importante do que participar de manifestações de rua, fazer panfletagens, assinar petições. Mais importantes do que promover debates, pois como é possível debater e argumentar com credibilidade e coerência em favor dos animais, se não praticamos em nós mesmos aquilo que defendemos no plano das ideias?

Conclusões

Historicamente, não há como separar o vegetarianismo do fundamento ético que o motiva. Também historicamente, esse fundamento mostrou-se limitado ao enfatizar apenas o sofrimento e o abate, sem considerar o uso, ou seja, a objetificação do animal. No mundo de hoje, porém, os avanços do conhecimento científico, bem como a evolução da filosofia da ética, tornam inevitáveis e inescapáveis a revisão e evolução tanto do conceito de vegetarianismo quanto de seu fundamento ético.

Essa fundamentação ética implica o reconhecimento de que os animais não humanos têm interesses fundamentais – a vida, a liberdade e a integridade – que são violados quando os usamos como objetos para fins humanos, interesses que devem ser respeitados. Tal reconhecimento, por sua vez, implica definir tais interesses como direitos que os animais possuem, por isso chamados de direitos animais. Não apenas o abate, mas toda forma de exploração animal, da qual o abate é uma mera extensão, representam violações desses direitos. Sendo assim, a abolição da exploração animal o único meio de realizar plenamente os direitos animais.

A partir desse aprofundamento da discussão ética e filosófica da questão animal, a coerência impõe não apenas a adoção de um conceito mais rigoroso – e etimologicamente mais preciso – de vegetarianismo, mas sua inserção no conceito mais amplo de veganismo, a partir do reconhecimento de que o vegetarianismo é, ele mesmo, uma resposta insuficiente para o dilema da exploração animal, que não existe nem é perpetuada apenas para os fins da alimentação humana.

Sendo assim, um movimento de defesa dos animais que mereça este nome deve abandonar definitivamente as falsas soluções que não confrontam diretamente o problema da exploração animal, ou seja: todas as dietas não vegetarianas, incluindo as protovegetarianas, e as políticas bem-estaristas de regulamentação que legitimam e perpetuam a exploração animal. Nosso papel, como defensores dos animais, é promover os direitos animais e o veganismo, do qual o vegetarianismo é a dimensão dietética.

Assim, os direitos animais devem ser definitivamente adotados como a base ética e filosófica do movimento em defesa dos animais, tendo a abolição como meta e o veganismo como sua dimensão prática. Desse modo, o veganismo não é um caminho incerto, ao qual nem todo defensor dos animais está vinculado. Tampouco é o ponto de chegada de uma trajetória de vida de busca do respeito pelos animais. Ele é o ponto de partida. Não é um fim em si mesmo, mas um meio para os fins da abolição e dos direitos animais.

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