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Quatro estações

18 de março de 2010
4 min. de leitura
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As pessoas que nasceram até os anos 70 bem sabem que, antigamente, tínhamos estações bem definidas. Nas regiões Sul e Sudeste do país elas manifestavam-se, infalíveis, a cada três meses:  primavera (de setembro a novembro), verão (dezembro a fevereiro), outono (março a maio)  e inverno (junho a  agosto). As estações surgiam silenciosas, vindas não se sabe de onde, ora misturadas ao frescor da manhã, ora trazidas pelos ventos de um fim de tarde. Dessa forma se cumpria, todo ano, o sagrado ritual do tempo e da vida.  O período das chuvas despedia-se no dia 20 de março, quando o outono punha-se a soprar as folhas secas.  Depois vinham as flores de maio, que se vestiam de vermelho todo quinto mês, para o deleite dos nossos olhos deslumbrados. E quando, enfim, as bailarinas do jardim tornavam a dormir, o frio que caía das estrelas se instalava em nossos corações por muitas e muitas noites,  até que de repente, doce milagre da existência, os campos renasciam em cores, aromas e sons.

Eu juro que era assim.  Quatro estações que nos ensinavam muito sobre a vida e o tempo.  A natureza se expressava em cada uma delas:  nas goiabeiras em flor, no canto dos sabiás, no leito dos rios ou no esplendor de um flamboyant.  Na época do inverno tínhamos de usar casacos, gorros e cachecol, senão mal conseguiríamos sair de casa. E quando desabrochavam as flores sob o balé de asas multicoloridas, com elas renascia a esperança.  Juro pela minha avó que todo ano era assim… Diz a lenda que São Paulo era conhecida como terra da garoa e Porto Alegre um lugar de frio intenso. Ironia ou não, o fato é que este ano, por quarenta dias e quarenta noites, a capital paulista foi literalmente tomada pelas águas,  enquanto em alguns rincões gaúchos os termômetros atingiram a marca – até então carioca – dos 40°C. Difícil acreditar, mas é tudo verdade.

Há tempos que muitas regiões brasileiras têm seu ciclo natural invertido. Já não se sabe qual é o mês mais chuvoso e nem se o verão irromperá abrasante no meio de julho. Os paulistanos mais  jovens desconhecem o que é primavera e muito menos inverno. Conhecem apenas duas estações ao ano: um outono deslocado (de junho a agosto) e um longo verão (de setembro a maio). Sério, basta conferir os registros das temperaturas computadas nas duas últimas décadas para concluir nesse sentido. Mas para não ser tão taxativo a ponto de excluir de vez a possibilidade do inverno, pode-se dizer que em São Paulo há uma semaninha de frio mais intenso, nada mais do que isso. Quanto à antiga estação florida, hoje o verão chega tão abruptamente que nem temos tempo de perceber as sutilezas do jardim.

Não bastasse a reação do planeta em defesa das matas devastadas, dos animais mortos e dos rios poluídos, o homem  insensível – responsável direto por tantos desmandos ambientais –  continua a desafiar a natureza  com uma outra provocação.  Sabem como?  Decretando o horário de verão, uma maneira artificial de adequar o tempo a interesses diversos, sobretudo de ordem econômica. Esqueçam o relógio biológico, porque “tempo é dinheiro”. Azar de quem for dormir mais tarde, porque às cinco horas da manhã o despertador soará inapelável.  Por quatro meses a cidade quase não descansa, milhares de luzes e chuveiros são ligados de madrugada, o sono desvanece e o cérebro desnorteia.  Nesse contexto não interessam as leis naturais, tão somente as leis do mercado.  Como se as razões da economia tivessem de prevalecer sobre a sabedoria da natureza, mostrando quem manda e quem obedece. Que coisa mais triste…

Quero de volta as quatro estações. Quero rever a primavera.  A praia branca e nua no verão. Quero caminhar no outono.  E no inverno simplesmente adormecer. Quero quero tanta coisa. O sol de uma manhã que se perdeu.  Quero o lamento do violão noturno.  Quero um mundo sem correntes.  Quero quero. Quero a luz da primeira estrela. E também um céu salpicado de astros. Quero compreender as vozes da noite.  Inventar palavras.  Distinguir corpo e alma. Quero um tempo em que se possa sonhar. Quero quero. Belo belo. Eu quero os mais belos versos de Manuel Bandeira:

Belo belo minha bela. Tenho tudo que não quero. Não tenho nada que quero… Quero quero. Quero a solidão dos píncaros. A água da fonte escondida. A rosa que floresceu… Quero quero. Quero dar a volta ao mundo. Só num navio de vela. Quero rever Pernambuco…

– Quero é a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

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