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Viver a mudança: os fins e os meios

5 de novembro de 2009
13 min. de leitura
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“Devemos ser a mudança que desejamos ver no mundo”
Mohandas K. Gandhi

I. Os fins e os meios na política

Desde a adolescência, sempre estive associado a movimentos políticos. Já frequentei reuniões partidárias, fui a congressos, participei de um jornal estudantil… Como é costume nos meios políticos de esquerda aos quais não sou estranho, sempre havia aqueles debates sobre como promover a mudança, a revolução, a instauração de uma nova ordem “justa e igualitária”, como se repetia no jargão dessa esquerda (note-se que a liberdade é uma questão menor nesse discurso…).

Sempre percebi, porém, alguns sinais de alerta no meio de tantas palavras de ordem. A prática desses partidos políticos, dos grupos estudantis que disputavam grêmios e centros acadêmicos, dos próprios militantes individualmente, sempre conteve contradições fundamentais com o discurso proferido. A relação desigual, o autoritarismo das lideranças, a falta de solidariedade, as disputas e intrigas mesquinhas. Sempre ficou evidente aos meus olhos que o mundo que esses militantes viviam nada tinha a ver com o mundo que aspiravam. No mundo sonhado, as pessoas teriam todas os mesmos direitos; as relações seriam de cooperação e solidariedade; cada um contribuiria com o seu melhor e participaria em igualdade dos benefícios da vida social. No mundo vivido, porém, o militante deve ser um profissional e cumprir ordens como um soldado; existe uma clara hierarquia que muitas vezes degenera em culto à personalidade; há uma desvalorização da liberdade individual que em outros contextos levou a extermínios em massa; a disputa política entre facções se dá em torno de objetivos mesquinhos. O que diferencia os “radicais” dos “moderados” muitas vezes é tão somente a falta de princípios (alguns vão dizer que é “pragmatismo”). Mas o autoritarismo e a tensão em torno de teses e lideranças não são muito diferentes – foi o que constatei nesses círculos.

Com o tempo, eu percebi o seguinte: passávamos muito tempo discutindo o mundo como ele deveria ser, e pouco nos preocupávamos em questionar se nossas práticas conduziam ao fim desejado. Naturalmente, esse dilema está resolvido em boa parte da mente das pessoas, sob a ideia de que “os fins justificam os meios”. Perguntar-se se faz sentido lutar pela justiça e liberdade por meio de uma organização protomilitar, hierarquizada, questionar se é certo “cortar cabeças” em nome da “humanidade”, ou se faz sentido que haja lideranças detentoras de honras e privilégios é uma veleidade estéril, perda de tempo na melhor das hipóteses, um delírio moralista criminoso e contrarrevolucionário que freia o caminho da transformação na pior delas.

De fato, o marxismo-leninismo se tornou tão influente no século XX justamente porque, aparentemente, havia apontado um caminho bem-sucedido para alcançar essa mudança, “provando” assim sua superioridade e veracidade como meio para alcançar o fim da revolução. Hoje poucos sabem, pois o discurso oficial não dá testemunho disso, mas, até a Revolução Russa, não era “evidente” em absoluto a superioridade teórica e metodológica do marxismo. Havia várias vertentes socialistas e, em diversos países, um forte movimento anarquista. “A história é contada pelos vencedores”, diz um velho ditado que a esquerda tanto aprecia. O que poucos percebem ou têm coragem de admitir é que também a história da esquerda é contada pelos vencedores, e os perdedores são atirados ao esquecimento.

O primeiro passo para discernir o caminho correto para alcançar nossos objetivos é se questionar sobre as consequências dos meios escolhidos. No caso da emancipação humana, opor-se aos métodos autoritários e violentos não consiste em mera veleidade. Retomemos o caso da Revolução Russa. Justamente aquilo que pareceu demonstrar a superioridade do marxismo-leninismo no início do século XX – suas consequências práticas – exige, atualmente, uma ampla reflexão crítica sobre ele. Se seu sucesso fugaz em 1917 validou-o, seu repetido fracasso em tornar realidade suas promessas, culminando no colapso definitivo da União Soviética em 1991, deve conduzir a uma radical revisão de métodos por aqueles que têm sincera aspiração à construção de um mundo mais justo. Há uma clara e inquestionável relação entre o fracasso do socialismo soviético e o autoritarismo, a falta de liberdade, a violência e a contraditória existência de uma burocracia privilegiada num regime político que se pretendia igualitário. Será que realmente podemos alcançar um mundo sonhado com métodos que negam todos os aspectos desse mesmo mundo? A experiência histórica desmente amplamente a tese de que “os fins justificam os meios” – e o caso da União Soviética é apenas um exemplo disso.

É nesse ponto da discussão que entra o veganismo. Antes eu costumava pensar, talvez praticando a autoilusão, que não podemos viver de acordo com nossos princípios porque as condições do mundo de hoje não permitem. Com o veganismo, entretanto, aprendi que podemos criar as condições para esse mundo sonhado por meio de nossa prática cotidiana. A construção de um novo mundo depende mais de um processo do que de uma ruptura repentina. Antes da Revolução Francesa, considerada como o marco fundador do mundo atual, já haviam ocorrido mudanças significativas que apontavam para a sociedade que se tentou instaurar por meio dela. Do mesmo modo, depois da Revolução Francesa, continuou existindo, por muitos anos, elementos do Antigo Regime que ela pretendeu derrubar.

Isso, claro, não significa desmerecer a necessidade da ruptura ou a possibilidade de interferir na realidade para mudá-la. Quer tão somente dizer que precisamos colocar a mudança em movimento. Não faz sentido adiar para um momento fundador a construção de um novo mundo. O novo mundo começa a partir das nossas ações. Não se alcança a justiça, a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a paz, por meio do autoritarismo, a hierarquia, o egoísmo, a violência. Se você não concorda com um determinado estado de coisas, não pode reproduzi-lo. E, mesmo assim, quantas pessoas de elevados princípios não conheci que se comportavam dessa maneira? E tenho certeza de que não sou o único a ter testemunhado esse tipo de hipocrisia. É fácil falar em emancipação, justiça, democracia. Difícil é rejeitar no dia a dia o sexismo e outras formas de preconceito; não mentir nem manipular as pessoas; não se deixar levar por posições de poder e prestígio; não ser um bajulador quando em posições subalternas, nem autoritário e vaidoso quando em posições de comando. E isso também se refere aos direitos animais.

II. Os fins, os meios e os direitos animais

Inúmeras vezes já ouvi pessoas dizerem que “é difícil ser vegano”, que “admiro, mas não consigo”, que “sozinho eu não vou fazer diferença”. São autoenganos usados para justificar atitudes que, racionalmente, não podem ser consideradas justas e éticas. Se uma pessoa concorda que não há justificativa para aprisionar, torturar e matar um animal, por que afinal ela irá continuar contribuindo para isso? Por outro lado, um simples ato da sua parte pode, em primeiro lugar, demonstrar que esses atos são desnecessários e, em segundo lugar, contribuir para pôr em movimento a mudança necessária para que tais atos sejam definitivamente abandonados.

É também ainda muito comum dizer que nós, veganos, não fazemos de fato “nada” em favor dos animais. Mas como assim? Não existe nada de mais eloquente e coerente que possa ser feito por eles do que se recusar a tomar parte na sua exploração. Por outro lado, ao se recusarem a promover ou mesmo aderir ao veganismo, as pessoas que se dizem defensoras dos animais estão praticando o pior tipo de hipocrisia: aquela que se paga com sangue.

Mas realmente a questão é ainda mais grave que a mera hipocrisia por si mesma. É também comum se alegar que o caminho do veganismo é “demorado” e “irreal”. Se o objetivo é difícil de ser atingido, isso apenas confirma a urgência da sua busca – não há tempo a perder. Por outro lado, ao se afastar dele, estamos adiando ainda mais o seu alcance. Ser vegano é, de fato, não um fim em si mesmo, mas um meio coerente com o fim. É apenas o começo, e não, como alguns supostos defensores dos animais afirmam, um objetivo elevado, mas distante. É só depois que tivermos um número significativo de veganos conscientes e comprometidos com a luta pelos direitos animais, isto é, a defesa intransigente do fim da exploração animal, que teremos a força e a condição para concretizar esse objetivo. A divulgação do veganismo e da filosofia dos direitos animais, portanto, é não apenas uma necessidade urgente, mas a única opção racional e coerente para aqueles que de fato acreditam que os animais têm direitos.

Mas e quanto àqueles que não acreditam nisso? Claro, nem todos irão realmente concordar que é de fato errado aprisionar, torturar e matar um animal. Não obstante, é sintomático que todas as sociedades e indivíduos têm certas intuições básicas sobre o erro que é infligir sofrimento a um animal, como também as têm sobre o erro que é submeter um ser humano à fome, à violência e outras formas de injustiça. Kant já afirmara que “a razão vulgar (…) sabe distinguir perfeitamente, em todos os casos que ocorrem, o que é bom ou o que é mau”[1]. Mesmo que não se reconheça isso e se prefira adotar um discurso cínico, o que nos falta, de fato, é bem menos a consciência do certo e do errado, e muito mais a coragem e a coerência para não sacrificar o que é certo em favor da comodidade ou do ganho pessoal.

Nesse sentido, portanto, os sonhadores e os cínicos são mais parecidos do que ambos gostariam de admitir. Daí resulta, no caso dos animais, que convencer onívoros, ovolactovegetarianos e bem-estaristas a adotar o veganismo e a filosofia do abolicionismo e dos direitos animais é tarefa muito semelhante. Não entro aqui no mérito sobre se o ovolactovegetarianismo é “um passo” ou se o ovolactovegetariano é mais aberto ao diálogo ou ao convencimento. Minha experiência pessoal diz que ovolactos podem ser tão ou mais difíceis de dialogar, e ser ovolacto não necessariamente supõe maior abertura aos direitos animais, pois a ética, a coerência ou a disposição ao “sacrifício” de abrir mão de certos hábitos podem passar longe das prioridades dessas pessoas – e daí que costumo dizer que muitos ovolactos têm antes repulsa à carne dos animais mortos que respeito pelos animais vivos. É por isso que muitos dos meus textos se voltam antes ao público vegetariano, pois mesmo entre eles, infelizmente, ainda há muitos a serem convencidos, e outros tantos a aprenderem a usar as ferramentas necessárias ao convencimento.

Quanto, por fim, à questão sobre o que nos cabe fazer em relação aos animais que já existem e se encontram abandonados às piores condições de exploração e abuso, eu quero enfatizar que o veganismo e o abolicionismo não são, em absoluto, “inúteis” para esses animais. Mesmo deixando de lado o fato facilmente comprovável de que a maioria das leis de bem-estar, mesmo quando cumpridas, garantem pouca ou nenhuma melhora na condição de vida dos animais explorados, resta o fato de que o veganismo contribui, sim, diretamente, para a redução do sofrimento dos animais já existentes. Em primeiro lugar, ao atingir a demanda e o rendimento, reduz a pressão para a criação de mais animais em espaços cada vez mais exíguos, além de tornar o negócio economicamente menos atrativo. Em segundo lugar, expande a consciência do problema, aumentando os espaços de debate e as possibilidades não só de maior adesão de pessoas ao veganismo, mas também de se promover leis abolicionistas, como a proibição de animais em circos, da experimentação animal, do uso de animais para tração e transporte etc. Em terceiro lugar, e como decorrência dos dois primeiros, a expansão do debate e consciência e a redução da demanda e lucratividade geram, por si mesmas, uma resposta estratégica dos exploradores: o argumento, falso ou verdadeiro, de que eles promovem e respeitam o bem-estar desses animais. Não duvido que, no futuro, essas reformas sejam cada vez mais promovidas pelos próprios exploradores, o que já vem ocorrendo e se dá por uma triste aliança estratégica com os bem-estaristas. Suponho que ela vá se intensificar e, no processo, desvelar quem realmente defende os verdadeiros interesses dos animais. O que importa, entretanto, na discussão deste texto, é que mesmo para os padrões de bem-estar, o discurso abolicionista e a adoção do veganismo contribui muito mais para a redução do sofrimento e a aceleração do processo de emancipação dos animais.

III. Conclusão

Para concluir, gostaria de acrescentar que, se sozinhos não podemos mudar o mundo, isso somente pode ser feito pela contribuição de cada um individualmente. É um falso lugar-comum a expressão de que “o coletivo é mais importante que o indivíduo”. São os indivíduos que sofrem com as injustiças, e é quando os indivíduos decidem cooperar coletivamente que toda a sociedade progride. Nesse sentido, a política é uma dimensão inevitável da vida humana, mesmo para aqueles que gostam de se dizer “apolíticos”. Ser “politizado”, como eu descobri por experiência própria, não é ser filiado a um partido, votar de dois em dois anos ou ter opinião sobre tudo. Ser politizado é ter consciência de que nossas ações têm consequências para nós mesmos e nossos semelhantes, gostemos ou não disso, e então percebermos que devemos fazer duas opções igualmente inevitáveis e importantes sobre como queremos interferir nesse mundo: contribuir para que ele mude ou permaneça como está; e como dar essa contribuição. Não basta ter um objetivo: é preciso ter um método. E este método, estou seguro, jamais poderá ser incoerente com o objetivo que temos pois, queiramos ou não, essa incoerência acabará por sacrificar os próprios objetivos. Por isso o poder acaba por ser um fim em si mesmo. O poder supõe hierarquia, desigualdade, comandantes e comandados. Não é um meio que sirva a quem deseja que essas instituições sejam abolidas. Da mesma forma, os direitos animais só podem ser promovidos e alcançados por uma prática coerente: a adoção e promoção do veganismo e do pensamento abolicionista.

Não será por um ato de vontade de um líder ou um grupo de revolucionários profissionais que alcançaremos nem a emancipação humana, nem a animal. Esses dois ideais, que eu considero igualmente importantes, somente serão concretizados pela conscientização individual e ação coerente e transformadora. Viver a mudança, pô-la em prática nas nossas vidas, é o método correto para promovê-la – desde os mais simples dos gestos e as relações interpessoais até a nossa conduta na vida pública, nos grupos em que tomamos parte, nos empreendimentos ou objetivos que perseguimos. Esse foi o maior aprendizado que o veganismo me proporcionou.

Viver a mudança na prática, ter uma conduta de vida coerente com nossos valores e princípios, não é apenas “um” dentre muitos caminhos possíveis – é a pedra fundamental, a base de toda transformação real. Sendo fundamental para se alcançar qualquer objetivo, a coerência é o caminho mais lógico e mais correto. Porém, e aqui reside o “problema”, nem sempre o caminho correto é o mais fácil e mais rápido de ser percorrido. Mas nunca deixará, por isso, de ser o caminho correto. E, consequentemente, o único caminho. Nós, que lutamos por um mundo melhor, portanto, não temos outra opção.

[1] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006; p. 31.

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