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Felinos abandonados no Brasil: o dilema continua

13 de novembro de 2015
6 min. de leitura
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Toda compaixão por esses animais eu compreendo bem. Por isso, compreendo bem as críticas ao que escrevo. Então, para acalentar alguns comentários ao outro texto, no qual tratei do dilema ético entre castrar ou não castrar os animais retidos sob a guarda humana (os que foram recolhidos das ruas antes que a morte os atingisse, ou mesmo os comprados em lojas e fornecedores), sigo pensando a questão.
Alguém escreveu na postagem anterior: não existe mundo ideal para esses animais, porque sempre alguém abandona algum deles e a gente não suporta ver tanta dor e sofrimento e acaba levando para cuidar, e daí tem que prender em casa e castrar, para poupar dois males: a morte torturante nas ruas e a reprodução geométrica de novos felinos. Muito boa ação. Aquele animal foi salvo da morte ou de uma agonia imensa, aquele animal paga sua parte por ter sido salvo da morte. Mas o preço pago para ter a vida poupada tem que ser cobrado de todos?
Existem. sim, cidades onde não há um animal sequer perdido, abandonado, dilacerado ou morto por envenenamento, enforcamentos e pancadas. Então, há, nessas cidades algo que nas outras se perdeu.
Vou dar um exemplo que vivi por seis anos. Na Alemanha nunca vi um gato sequer abandonado ou qualquer cão. Não creio que, simplesmente ou por natureza, os alemães sejam melhores do que nós. Mas, também sabemos que, para ser bom e responder pela vida de alguém, o ser humano também precisa de uma estrutura material, política, financeira e emocional favorável à bondade. Como é que os alemães podem ser bons com os gatos e cães?
Lá, não há como abandonar um animal sem que o abandonador seja reconhecido pelas autoridades. Não há como um gato qualquer sair por ali e se perder, perdendo o lar que o tutela, muito menos há quem possa “soltar” seu gato ou abandoná-lo sem ser identificado. E sabem qual a mágica inventada pelos alemães? A mágica foi uma atitude política, institucional, uma política de Estado, válida em todas as cidades, para todas as pessoas humanas, incluindo todos os moradores de rua que queiram ter um animal não humano junto a si (geralmente o cão, por razões óbvias, pois os gatos saem de perto quando algo vai mal).
Ninguém, mas ninguénzinho mesmo pode ter um animal como se fosse um objeto que se pega e se larga quando melhor aprouver. Toda pessoa humana que quiser ter uma pessoa de outra espécie sob sua guarda e companhia, precisa ir à Prefeitura registrar a pessoa da outra espécie sob sua tutela. Há regras. E se alguém não as cumpre, há fiscalização e penalidades. Aqui, não.
Então, porque não queremos lidar com a causa do mal, o abandono de animais que sequer tiveram um registro de nascimento e muito menos a assinatura de responsabilidade aposta a uma tutela, essa liberalidade brasileira para se ter animais como se fossem bonecas e bonecos sintéticos descartáveis, ficamos enxugando gelo, lidando apenas com a consequência, o desdobramento final dessa pseudo liberdade ou desse pseudo direito humano de possuir animais como se fossem objetos. Aliás, até para ter certos objetos é preciso registrar: celular, automóvel, casa, terreno.
E, como somos bem-estaristas a favor de nosso conforto, se não lidamos com a causa, porque isso nos dá trabalho, quando lidamos só com o que chega ao final de um traçado e nos causa mal, acabamos por descontar parte do mal-estar que nos causa, outra vez, em quem? Nos animais. É que quem socorre vários animais, dezenas ou até centenas deles, não tem meios para fazer as coisas de outro jeito. Mas está certo uma pessoa ser pressionada moralmente a tal ponto, o de ter que ser socorrista em tantos casos? Se há tantos casos, há tantos casos errados a serem corrigidos. E quem está corrigindo tantos erros? Ninguém.
Sempre sobra para os animais. Damos comida e abrigo a eles. Certo. Milhares de humanos, milhões, estão fazendo isso. Mas está faltando um trabalho pedagógico junto com o socorrismo, para que o socorro, no futuro, seja só por algum acidente, não por abandono. Nos últimos 30 anos não vi um trabalho de educação para não se ter animais sem registro de tutor nas cidades, o registro de sua presença na casa como se registra a de um recém-nascido humano. E por quê?
Porque, dos dois lados, o do abandonador e o do socorrista, a forma humana de abordar o problema está equivocada há décadas: machucar, não dar alimento ou cuidado, torturar ou mesmo matar, de um lado; e, de outro, recolher, recolher e recolher (seguindo a compaixão, o que é louvável), dar comida e proteção aos desamparados. E o que mais? Mais nada.
A que esta engrenagem: abandono seguido de coleta, tem levado? Ao esgotamento emocional das socorristas. Ao descaso dos abandonadores. Indiferença e exaustão, juntas, resultam em atonia política. E a senvergonhice alheia cada vez mais inchada. Imaginemos o que pode estar acontecendo, nesses minutos, a 22 milhões de felinos, estimativa populacional do IBGE, em nosso país?
A hipótese de recolher, que é da ordem da compaixão, confirma o ato de descartar, que é um ato político de um sujeito ativo não identificado, um ato que joga para o outro, o público, neste caso, para um sujeito compassivo não identificado, um sujeito indeterminado que o destino marcará para ser a socorrista daquele animal, a responsabilidade que era privada do sujeito abandonador não identificado, e da qual ele pode se livrar sem penalidade alguma, porque não há registro de sua responsabilidade por aquele animal que descartou.
A atitude da compaixão precisa ter uma nova orientação. E, para dar amparo e acolher essa nova orientação tem que ter uma política. Descartar animais é um ato político. Recolher tem sido um ato privado, um ato de compaixão. Sabemos que entre a compaixão e a política, entre os socorristas e os abandonadores, maltratadores, mutiladores e matadores de animais eleitos para estima há um fosso.
Precisamos abordar isso de forma política. E por política, por favor, não estou pensando em política partidária. Estou pensando em responsabilidade civil, comum, coletiva, pública. Uma responsabilidade que em todas essas décadas jamais os maltratadores, negligenciadores, mutiladores e matadores de cavalos, cães ou gatos tiveram que assumir, porque sempre tem alguma pessoa compassiva para fazer o trabalho de recolha do que eles descartam como lixo. Se a gente pega o saco de lixo que o vizinho joga em nossa garagem todos os dias e o coloca na lixeira, todos os dias o vizinho vai atirar seu lixo em nossa garagem. É disso que estou falando. Da mudança de atitude de quem hoje está refém, na condição de catador do lixo alheio. E não estou dizendo que os animais devam ficar lá onde são jogados. Só estou dizendo que tirá-los de lá sem que haja qualquer meio de identificar e cercar o responsável por ele, ou sem ter qualquer outra atitude política para escudar o socorro desse animal, está reforçando o ato de descartá-lo em quem não vê na pessoa equina, felina ou canina, nada mais do que um resíduo do qual quer se livrar. E o dilema ético: ter gatos nas cidades e ter que castrá-los, tema abordado no texto Felinos felizes?, continua, pois as gatas entram no cio quando em contato com os gatos, não há um ciclo regular de ovulação nelas, segundo o que li em minhas buscas.

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