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Todos os anos na escravidão

11 de março de 2014
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Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, a “Casa dos Escravos” fica na pequena ilha de Gorée no Senegal. No último umbral da casa, aquele que antecede o mar, há uma inscrição no alto: “desta porta, para uma viagem sem retorno”. Nesse lugar os negros cativos eram separados por idade, sexo e somente as crianças abaixo de oito anos podiam ficar junto da mãe. Na chegada, eram pesados e os adultos abaixo de 60 kg passavam por um “processo de engorda” antes de seguir para a viagem que não teria retorno.

Nesse longo processo de perda de identidade e dignidade, famílias foram violentamente separadas e arrancadas do lugar onde assentavam suas raízes e cultura. Laços sociais eram desfeitos e vidas, com toda uma história e memória, transformavam-se, de uma hora para a outra, em propriedade. Produto com preço de mercado, o que possibilitava o seu comércio e a sua transformação em máquinas de trabalho.

Calcula-se terem passado por Gorée, entre os século XV e XIX, aproximadamente 20 milhões de africanos. O Brasil foi um dos principais destinos e tornou-se o maior território escravagista do hemisfério ocidental por mais de 350 anos.

Esta é parte de nossa história recente e muito nos envergonha. O homem branco imputou a escravidão ao seu semelhante, unicamente em razão da cor de sua pele. No Brasil, a escravidão era considerada uma “sólida instituição nacional”, portanto, inquestionável. Aqueles que eram contra a abolição acreditavam ser este um costume arraigado na cultura e que sua extinção iria perturbar a economia interna. Seria um caos, o “precipício de uma ruína incontável”. Apesar de tudo isso, essa instituição sólida foi abolida.

Inúmeros paralelos podem ser feitos entre a escravidão humana e a dos animais: o comércio, a destituição do direito à própria vida, a liberdade de ir e vir e a integridade física. Temos, nos dois casos, a violência e o uso desigual da força com o intuito de dominar e tornar a parte mais frágil em propriedade e mercadoria.

Se Martin Luther King tinha um sonho (“I have a dream”), hoje, abolicionistas em todo o mundo continuam lutando pelo sonho da abolição da escravidão animal. Fazem isto se recusando a utilizar, consumir ou ingerir tudo aquilo que deriva desta escravidão. Ensinam, com o poder do exemplo, que é possível: “eles não merecem e nós não precisamos”. Outros contribuem para o avanço do debate disponibilizando reflexões instigantes provenientes de várias áreas do conhecimento ou lutam para mudar leis.

Peter Singer, um dos pioneiros em organizar um corpo teórico em prol da libertação animal, defende que a sensibilidade ou a capacidade de sofrimento, associada à consciência desse sofrimento (senciência), é o critério de referência. É do direito dos animais receber um tratamento que os poupe de circunstâncias dolorosas. Já Tom Regan , por sua vez, é enfático ao dizer que, “quando se trata de como os humanos exploram os animais, o reconhecimento de seus direitos requer abolição, não reforma. Ser bondoso com os animais não é suficiente. Evitar a crueldade não é suficiente. Independentemente de os explorarmos para nossa alimentação, abrigo, diversão ou aprendizado, a verdade dos direitos animais requer jaulas vazias, e não jaulas mais espaçosas”.

Conforme sinaliza o sociólogo alemão Norbert Elias no seu livro A Sociedade dos Indivíduos, “a história não é um sistema de alavancas mecânicas inanimadas e automatismos de ferro e aço, e sim um sistema de pressões exercidas por pessoas vivas sobre pessoas vivas”. Para Elias, um ato, uma posição “se entremeará com os de outras pessoas; desencadeará outras sequências de ações, cuja direção e resultado provisório não dependerão desse indivíduo, mas da distribuição do poder e da estrutura das tensões em toda essa rede humana móvel”.

Apesar de alguns séculos de luta, ainda não chegamos na plenitude dos direitos humanos e estamos na gênese do movimento pela libertação animal. Temos uma pequena margem de decisão e de responsabilidade neste processo. Iremos, daqui a cinquenta anos, quem sabe, assistir a um filme, assim como hoje estamos assistindo a “12 anos de escravidão”, vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2013. Seremos identificados como aqueles que tiveram um sonho e lutaram pela abolição animal ou então como aqueles que diziam que esta é uma “sólida instituição”, por isto, inquestionável.

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