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A Justiça

7 de julho de 2014
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É corriqueiro no meio animalista ouvirmos que a defesa dos animais não-humanos contra o especismo é uma questão de justiça social. Isso significa que o especismo é uma ação injusta? Tratar os outros animais como coisas, produtos, bens de consumo é praticar injustiça? Sim. Diante da avalanche de obras da chamada Ética Animal nas últimas décadas, está mais que patente que tratar indivíduos com interesses semelhantes de forma dessemelhante é injusto.

Tomar posse do corpo e do espírito dos outros animais e usá-los das mais diversas formas para satisfazer prazeres supérfluos humanos por eles serem de outra espécie é tão injusto quanto o é a posse e uso de outro humano simplesmente por ele ser de outra “raça”. Vivemos num mundo especista. Vivemos num mundo injusto, onde o mal se tornou banal e a violência se institucionalizou. Diante disso, é possível ensinar alguém a ser justo?

Tal pergunta nos coloca defronte uma antiga questão filosófica que nos remete ao Sócrates do Mênon e da República – “é possível ensinar a virtude?”. Com Sócrates aprendemos que a virtude implica num saber que consiste em trabalho de conversão interior. Ao comentar a posição socrática, o helenista Werner Jaeger, em sua monumental Paidéia, diz:

“Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio (enkráteia) se converteu numa ideia central da nossa cultura ética. Essa ideia concebe a conduta moral como algo que brota do interior do próprio individuo e não como uma mera submissão à lei, tal qual exigia o conceito tradicional de justiça.”

Em sua mais conhecida obra, a República, Platão coloca a justiça em um patamar que vai muito além da mera observância das leis. Nesse sentido Jaeger, ao comentar a obra platônica coloca que:

“A justiça tem de ser inerente à alma, uma espécie de saúde espiritual do homem, cuja essência não se pode pôr em duvida, pois de outro modo seria apenas reflexo das variáveis influencias exteriores do poder e dos partidos, como o é a lei escrita do Estado.”

No entanto, quando se procura falar da justiça como virtude, é a obra Ética Nicomaquéia, de Aristóteles, a fonte mais visitada. Nela vemos a definição de justiça como “a disposição da alma graças a qual elas [as pessoas] se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo”. Fundamentando-se em Eurípides e Têognis, Aristóteles diz que a justiça “é a excelência moral perfeita”, é a prática da excelência moral e, é “perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao outro”.

Na República, Platão definia a justiça como o “bem dos outros”. É nessa perspectiva que a ciência máxima, a Política, coloca que a justiça é a virtude perfeita em relação ao outro, pois seu objeto é o bem, é a igualdade. Por isso, como bom herdeiro, Aristóteles diz: “… a justiça, e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o ‘bem dos outros’, de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros (…)”. E logo em seguida define o homem justo como o que não “põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo, e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil”.

Desde a antiguidade, fazer justiça aos outros é considerado uma tarefa difícil. E nunca uma ideia casou tão bem com a proposta do modo de vida vegano que a definição de justiça como uma disposição da alma que se dispõe a fazer o que é justo aos outros. E quando esse outro pertence a outra espécie essa prática da justiça se assemelha ao mais genuíno altruísmo.

Voltamos a nossa questão, como ensinar a outro humano a ser justo com o outro não-humano, quando ele não o é com sua própria espécie? Vemos até mesmo dentro do movimento animalista, pessoas que se consideram “defensores dos animais” utilizarem a lei de Talião como modelo de justiça, e se identificam com o que o juiz dos mortos, Radamantis, apontava como justo: “se alguém sofre o mesmo que infligiu, então teremos a justiça feita”. Aristóteles condena a atitude das “pessoas que procuram retribuir o mal com o mal (se não podem agir desta maneira, estas se sentem como se fossem escravos)”.

Infelizmente, essa mentalidade doentia é ensinada, está embutida nos currículos oficiais e nos ocultos por todo o território nacional como algo natural. Assim como as virtudes, os vícios também são aprendidos por mimésis, e se tornam após demasiada repetição, uma segunda natureza, são frutos do habitus. Ninguém nasce justo, corajoso, temperante e prudente. É necessário aprender e praticar. É preciso forjar uma segunda natureza virtuosa e isso só é possível por meio da educação. Educação no sentido amplo.

Cabe ao educador vegano essa árdua tarefa de ensinar a prática da justiça para além da nossa espécie, para isso ele deve exercer bem a sua função, não se atribuir demasiadamente coisas boas, trabalhando para os outros, cuidando bem dos outros. Trata-se de responsabilidade ética. Essa responsabilidade vem do saber deliberar, saber escolher e consequentemente saber agir justamente.

Para Aristóteles os atos justos e injustos são voluntários ou involuntários: “Considero voluntário, qualquer ação cuja prática depende do agente e que é praticada conscientemente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido”.

Na sociedade especista em que vivemos, as pessoas após tomarem conhecimento de todo o mal ao qual os animais não-humanos são submetidos, em sua grande maioria, continuam de forma cínica, a manter seu habitus injusto. Sua ação é voluntária, muitas vezes, deliberada. Quando o agente age conscientemente, mas não houve deliberação, a ação foi injusta, mas o individuo pode não o ser. Agora, quando o agente age deliberadamente, ele não foi só injusto, mas moralmente deficiente.

Dentro da causa animal temos dois tipos de agentes que muito têm se posicionado contra o trabalho dos educadores veganos abolicionistas, são os veganofóbicos e os bem-estaristas. Suas ações são voluntárias, muitas vezes deliberadas. Eles têm consciência de quem atingem, com o quê e para quê. Deixando por ora o olhar aristotélico, podemos pela ótica do pensador contemporâneo Slavoj Zizëk, ao comentar a obra Crítica da Razão Cínica de Peter Sloterdijk, dizer que:

“O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância entre a máscara ideológica e a realidade social, mas apesar disso, continua a insistir na máscara. A fórmula, portanto, tal como proposta por Sloterdijk, seria: ‘eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem!’. A razão cínica já não é ingênua, mas é o paradoxo de uma falsa consciência esclarecida; sabe-se muito bem da falsidade, tem-se plena ciência de um determinado interesse oculto por trás de uma universalidade ideológica, mas, ainda assim, não se renuncia a ela.”

O discurso ideológico bem-estarista e veganofóbico é cínico, desonesto, mantenedor do status quo, e injusto para humanos e não-humanos. “Não é simplesmente uma mentira, mas uma mentira vivenciada como uma verdade, uma mentira que pretende se levada a sério”, afirma Zizëk. Não é exagero dizer que a maioria esmagadora das ações dos bem-estaristas e dos veganofóbicos não é só injusta, mas também moralmente deficiente.

Diante disso é que se torna mais que necessário o trabalho politico-pedagógico critico realizado pelo educador vegano.

Ser justo, ou seja, fazer o bem ao outro, sendo esse outro da minha espécie ou não é tarefa árdua, exige força da alma, prudência, propósito firme de viver não violentamente. Utopia, é isso que é a educação vegana no mundo de hoje. Nada mais utópico e paradoxal que ensinar a importância da justiça, não a justiça no sentido legalista, mas, como virtude, como essa disposição da alma de fazer o bem ao outro, como ápice da excelência moral.

É sabido que o educador vegano acredita que o dever de não causar um dano ao bem-estar e bem próprio de indivíduos não-humanos não é uma questão de sentimentalismo como muitos levam a crer, mas de justiça. Somente através do processo educativo aprendemos e ensinamos que temos o dever de não infligir dano ao outro, dever de levar em consideração a vulnerabilidade do outro; dever esse que advém do bem deliberar, do exercício de fazer escolhas refletidas.

Cabe ao educador vegano abolicionista guiado pela sabedoria prática provocar seu público a “fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo”. As pessoas pensam que é fácil serem justas, mas não é, adverte Aristóteles. Isso é motivo para desistir da luta pela abolição do especismo? Não. É preciso lutar por justiça. Porque o contrário seria indigno.

Nota: agradeço a Sarah Rodrigues dos Santos pelos diálogos sobre o tema que muito contribuíram para a conclusão desse artigo.

Referências:
ARISTÓTELES (1999). Ética a Nicómaco. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. (Edición bilingue: griego/castellano).
_____________ (1998). Politica. Lisboa: Vega. (edição bilíngue: grego/português).
JAEGER, Werner (2001). Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes.
PLATÃO (2001). Mênon. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola. (edição bilíngue: grego/português).
________ (2001). A República. Lisboa: Fundação Calouster Gulbenkian.

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