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Direitos animais: o enfoque abolicionista

4 de março de 2014
7 min. de leitura
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Tradução: Lucas Laitano Valente – © Ediciones Ánima.

Atualmente, o abolicionismo reclama a necessidade de uma clara definição de seu conceito para entender a importância que possui em relação à concessão de direitos aos animais. Tento aqui prevenir um possível uso maléfico, através de versões extensivas ou ambíguas, preservando o conceito para não desgastar o termo.

O abolicionismo nega a condição de propriedade dos animais não-humanos. Encara um ponto de partida diferente daquele habitualmente considerado para a defesa dos animais, possibilitando um novo e eficaz marco teórico para a análise da realidade. Graças a ele, podemos começar a formular novas perguntas, ao invés de continuar insistindo na ineficiente procura por mais respostas para as mesmas perguntas de sempre, abordando assim novas perspectivas. Julgam-no “extremista”. Na realidade, isso é só aparência. Verdadeiramente extremista é o grau de opressão e utilização a que sujeitamos os animais não-humanos, apropriando-nos das suas vidas de maneiras espantosas e incontáveis.

Na teoria dos direitos animais do professor Gary L. Francione, o termo “abolicionismo” é conceituado pelo autor quando se refere às medidas legais cabíveis no sentido de suprimir a condição de propriedade dos não-humanos. Estas medidas, consideradas dentro do objetivo abolicionista – e opostas, portanto, à reforma bem-estarista, que considera seguir utilizando os animais como recursos – são chamadas de “proibições”, para que não ocorra confusão com o objetivo final a longo prazo, qual seja, a abolição da propriedade de animais não-humanos[1]. Os critérios que Francione indica para considerar estas proibições como parte da mudança final no sentido da abolição são colocados para dar início, e não para finalizar a abordagem deste assunto. O indiscutível é a diferença entre estas e a reforma bem-estarista, útil para quem defende a postura filosófica do bem-estar animal, que são aqueles que, em definitivo, a formularam e a fomentam desde organizações ad hoc – como, por exemplo, os Colégios de Veterinários, organizações bem-estaristas, projetistas de abatedouros ao estilo Temple Grandin, indústrias exploradoras ou entidades protecionistas – que “só se dedicam aos animais sem lar”. Desta maneira, o abolicionismo refuta as campanhas e os projetos legislativos bem-estaristas de qualquer natureza, sem importar quem os sustente, porque só procuram uma mudança no trato aos animais não-humanos, sem questionar a utilização em si dos mesmos. A reforma, introduzindo supostas melhoras, vai no sentido inverso ao do projeto abolicionista, porque serve aos interesses de propriedade dos exploradores e é por isso que para estes elas são aceitáveis. Estas reformas não são feitas com o fim de ajudar aos animais não-humanos a saírem paulatinamente do controle daqueles que os exploram, bem como sequer evitam formas de exploração maiores e mais sofisticadas.

Nesse sentido o abolicionismo é semelhante, por exemplo, ao movimento contra a escravidão à qual institucionalmente estiveram submetidos os povos de ascendência africana. Os mesmos foram considerados propriedade dos senhores brancos, sendo comercializados principalmente com o objetivo de servir de mão-de-obra e serventes aos seus amos conquistadores e exploradores do Novo Mundo. Eric Williams considera que a origem da escravidão negra foi econômica e não racial: teria se originado na necessidade de baixo custo da mão-de-obra e não na cor do trabalhador, sendo o racismo uma racionalização posterior para justificar a opressão de outros seres humanos [2]. Desta forma, o “complexo de superioridade” que cultivou o racismo, baseado nas características biológicas e hereditárias assinaladas como símbolos de inferioridade – e não de diferenciação – do grupo dominado, sustentou e perpetuou o sistema, inclusive depois da abolição. Assim, a violência se mostra endêmica ao controle da posse de animais que têm o impulso de escapar, revelando que a escravidão é algo mais que um problema econômico. O racismo e o especismo transitam em patamares similares. É que as coisas não são coisas: são sempre coisas “de alguém”. E nesta sociedade, esse “alguém” pode possuir estas “coisas” tanto para levá-las a dar um passeio pelo parque quanto para convertê-las em um rentável escravo [3].

A ideologia do bem-estar animal, que orienta e explica a regulamentação das atividades que exploram os não-humanos como recursos, se projeta operativamente na aplicação das leis vigentes. Porém com o nascer de cada dia, continuam havendo vítimas e carrascos nos abatedouros, produtos e consumidores nos negócios, livres e escravos nas crenças. O ser sensível “protegido” – na terminologia da normativa bem-estarista – segue sendo matéria prima para produzir presunto, queijo ou corpos de experimentação. Segue degradado aos limites da jaula e do matadouro. O agir humano, conforme estas leis, não resultou em mudanças consideráveis no nível de desprezo pela vida não-humana. O público consome os animais com a convicção de que há organizações que lutam no combate à extinção e pelo tratamento digno, e colabora com sua assinatura quando perguntado se estes animais importam.

Em 1996, Francione escrevia o que iria repetir em janeiro de 2007 numa entrevista para o VeganFreak [4]: Neste momento da história da relação entre os humanos e os demais animais, os ativistas não deveriam usar seus recursos para tratar de conseguir mudanças legislativas pró-abolição, isto porque esta medidas inovadoras teriam que reunir critérios muito difíceis de alcançar. São eles [5]:

  1. Deve constituir uma proibição.
  2. A atividade proibida deve ser parte integrante de uma instituição exploradora, constituindo uma atividade da mesma.
  3. A proibição deve reconhecer e respeitar o interesse não-institucional do animal. Isto é, um interesse real de indivíduo e não o do seu proprietário para explorá-lo.
  4. Os interesses dos animais não podem ser negociados. Isto significa que devem prevalecer mesmo que isto não implique em benefícios para os humanos.
  5. A proibição não deve dar espaço a formas alternativas, supostamente mais “humanas”, de criação dos animais. É o caso típico de permitir a criação extensiva de animais – em vez de intensiva – na indústria de utilização de animais e de produtos alimentares de origem animal.

Não só estes critérios são difíceis de se reunir como também são difíceis de se exigir numa campanha, estando tão enraizada a ideia da propriedade de seres sencientes não-humanos. Francione considera necessário que toda energia disponível seja dirigida no sentido de semear uma mudança de paradigma centrada na negação do uso e da exploração dos animais não-humanos, para construir um movimento social e político que possibilite alcançar estas proibições rumo à abolição da escravidão. Isto conduziria à adoção do veganismo como aplicação do abolicionismo na vida diária.

Necessitamos perceber os profundos laços que existem entre a exploração animal, a economia e a sociedade em si mesma, num momento de absoluta crise ambiental cujas principais causas se situam na ideia do domínio sobre a natureza e na separação entre o humano e o resto da animalidade não-humana numa tentativa de justificar esta opressão. Uma mudança de atitude das pessoas gerará uma mudança significativa na condição em que hoje padecem milhões de não-humanos. Neste sentido, o veganismo é uma atitude de respeito a toda vida animal não-humana senciente, que implica num modo de vida onde se evitam voluntariamente o uso, consumo e/ou participação em atividades derivadas desta escravidão, exploração e morte. Não é um fim em si mesmo, senão a lógica consequência de um olhar não-instrumental sobre os não-humanos, que os reveste com um valor inerente.

O movimento pelos direitos animais teve início há pouco tempo. O abolicionismo questiona a servidão e propõe na prática uma transformação real na nossa relação com os animais não-humanos. Como abolicionistas, nossa tarefa consistirá em criar diariamente este movimento através de milhares de movimentos locais livres de contradições e repletos de receitas antiespecistas: todas 100% vegetarianas.

Referências:

[1] Francione, Gary L., “Rain without Thunder. The Ideology of the Animal Rights Movement”, Temple University Press, 1996.
[2] Williams, Eric E., Capitalism and Slavery, New York, 1966.
[3] Ver as relações das leis bem-estaristas com as demais normas jurídicas e sócio-econômicas em: Aboglio, Ana María, O liberacionismo e atual sociedade escravagista. Dizer e fazer hoje para encurtar o tempo da colheita. pdf_16
[4] Entrevista a VeganFreak, disponível em: http://www.abolitionistapproach.com/media/mp3/veganfreak-radio-2007-02-05.mp3
[5] Ídem nota 1. Vale recordar a epígrafe escolhida para este livro: “Se não há luta, não há progresso. Aqueles que dizem defender a liberdade e no entanto deploram a agitação… querem chuva sem trovões nem relâmpagos.” Frederick Douglass.

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