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A produção (e consumo) de leite e ovos realmente é mais ética do que a de carne e não mata animais?

2 de janeiro de 2016
9 min. de leitura
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Aviso de conteúdo traumático: contém referências a violações sexuais.
Muitos protovegetarianos (pessoas que não comem mais nenhuma carne mas ainda persistem no consumo de um ou mais outros alimentos de origem animal) acreditam que consumir laticínios e ovos seria menos antiético do que comer carne. Afinal, uma grande parcela deles crê que a produção desses derivados “pelo menos não mata o animal ‘fornecedor’”. Será mesmo que as criações que extraem leite e ovos respectivamente de mamíferas e aves fêmeas poupam-nas de serem abatidas?
A produção de leite
Ao contrário do que diz o senso comum dos protovegetarianos que não estão em transição ao veganismo, tanto a produção de leite (alô, Paul McCartney!) quanto a de ovos representam exploração e morte violenta para as fêmeas “produtoras”. Muitas vezes, inclusive, essa submissão é ainda mais violenta e privativa de direitos, mesmo no bem-estarismo, do que o que acontece na própria pecuária produtora de carne. Além disso, também condena ao abate precoce os filhotes delas.
Comecemos a perceber isso conhecendo a realidade sobre a produção de leite, seja ele de vaca, de cabra, de búfala, de ovelha ou de qualquer outra mamífera submetida à pecuária.
A vida das fêmeas “leiteiras” é ainda pior do que a dos animais ditos “de corte”, aqueles que são explorados para “fornecerem” carne, couro e outros derivados mortos. Embora sejam abatidas numa idade menos jovem do que os animais “de corte”, esse relativo tempo a mais de vida é completamente compensado por outro fato. É o de serem exploradas intensivamente ao longo de todos os seus dias de “vida produtiva”, seja como máquinas “pertencentes” a fazendas leiteiras intensivas ou semiextensivas, seja como “fornecedoras” compulsórias “bem tratadas”.
As fêmeas “leiteiras” têm roubado de si o leite que seria destinado exclusivamente a seus filhotes. São inseminadas frequentemente em intervalos curtos, por métodos bizarros como a inseminação artificial – por meio da introdução de um bastão de sêmen diretamente no útero da fêmea, com o peão enfiando sua mão e antebraço dentro da vagina dela – ou a “cobrição forçada”, uma forma violenta de acasalamento comparável ao estupro.
São obrigadas também a dar à luz filhotes com os quais não terão o direito de ficar e proteger como toda mãe deveria ter o direito de fazer. Passarão meses ou anos – mas sempre muito menos do que sua expectativa de vida natural – sofrendo constantemente esses tormentos até serem levadas à morte em matadouros. E seus pequeninos quase sempre são desmamados à força – seja abruptamente, seja gradativamente, mas sempre contra a vontade de mãe e filhos – e levados embora.
Falando-se em levar embora, ao contrário do que o senso comum acredita, o abate é lugar-comum nas criações leiteiras. São mortos tanto os filhotes como suas mães.
Em relação às mamíferas “produtoras”, os pecuaristas são explícitos em dizer: aquelas que dão “prejuízo aos negócios” devem ser descartadas por meio do chamado “descarte involuntário”, ou seja, abatidas. O chamado descarte “involuntário” se dá por diversos motivos: doenças nos cascos das patas, doenças nos órgãos do sistema reprodutor, problemas nas glândulas mamárias, repetição indesejada de cios, inflamação patológica nas tetas (mastite severa), expiração de sua “vida produtiva”, reincidência de abortos e até mesmo baixa produção de leite.
Há casos, é necessário acrescentar, em que vacas “leiteiras” são encaminhadas ao fim violento de suas vidas simplesmente por “protesto” de seus “donos”. Como exemplo, houve em 2008 uma manifestação de pecuaristas do Triângulo Mineiro, que mandaram para um matadouro cerca de 200 vacas. O massacre aconteceu com o objetivo de reivindicar que seus clientes pagassem mais caro pelo leite produzido na região e que a demanda nacional de revenda e consumo de leite fosse ampliada.
É de suma importância também ressaltar que mamíferas “leiteiras”, como as vacas, também são mortas para produção de carne, teoricamente quando não estão doentes. Essa dissertação frisa isso, ao dizer (página 2):

Cerca de 40% dos animais abatidos no Brasil são fêmeas de descarte e são destinadas ao mercado interno sem diferenciação de preço. No entanto, para os produtores a remuneração é menor, pois estes animais apresentam baixos rendimentos de carcaça e suas carcaças são de qualidade inferior. Segundo o IBGE (2010), a categoria animal que apresentou o maior aumento nos últimos dez anos para a produção de carne bovina no Brasil foi de vacas de descarte (8,1%), enquanto as demais categorias animais mantiveram-se ou diminuíram sua participação na produção de carne.

Em outro trecho (página 5), Rezende afirma:

Nos países desenvolvidos, as vacas de descarte são destinadas à produção de carne industrializada e somente os cortes nobres são colocados à venda no varejo. Porém o preço é diferenciado da carne de novilho e o consumidor tem acesso à informação do produto que está consumindo (PEROBELLI et al., 1995). Já no Brasil, a carne de fêmeas de descarte é consumida de forma indiferenciada, ou seja, comercializada com mínima informação sobre o produto e preços semelhantes das carnes de novilhos ou novilhas mais jovens. Dessa maneira, Santos et al. (2008) comentam que a carne de vacas de descarte é uma alternativa para o abastecimento das classes de menor poder aquisitivo e com menores níveis de exigência de qualidade.

O abate dos filhotes também é uma realidade gritante. Esses animais não são considerados “bons” para serem mantidos vivos além de sua infância pelos pecuaristas. Segundo eles, não servem nem como reprodutores, já que os touros reprodutores vêm de rigorosa seleção, nem como “novilhos de corte”. Alguns são explorados e abatidos mesmo muito pequenos para a produção de carne de vitela.
Há muitos casos, além disso, em que os bebês são simplesmente tomados das mães, abatidos em extrema precocidade – às vezes com poucas horas ou dias de vida – e descartados mortos como lixo. Esse artigo é emblemático ao falar do destino desses pequeninos, e dele três trechos se destacam:

“A utilização de machos leiteiros [ou seja, bezerros desmamados de vacas leiteiras] é bastante difundida e desenvolvida nos países Europeus, onde estes animais são utilizados para produção de carne e considerados uma importante fonte de renda para os produtores de leite e para a cadeia produtiva da carne, pois, aproximadamente, 20% da carne bovina consumida, nesses países, são oriundas da produção de vitelos, que cresce a cada ano, na busca por carne de coloração mais clara, tenra e própria para preparo de pratos sofisticados.”

“No caso de produção de carne branca o objetivo deste sistema é obter bezerros com 115 a 200 kg de peso vivo (70 a 125 kg de carcaça), com aproximadamente, 3 a 4,5 meses de idade. Para tanto os bezerros precisam ganhar, em média, mais de 900 g/cabeça/dia, com boa conversão alimentar. A carne dos animais deve apresentar uma coloração rosa pálida, e uma excelente textura, maciez e pouca gordura. O sistema de alimentação consiste em alojar os animais em baias individuais, e alimentá-los exclusivamente com dieta líquida, preferencialmente um substituto do leite, que deve ser deficiente em ferro.”

“No Brasil, a criação de bezerros machos em granjas leiteiras especializadas atinge número pequeno de animais nascidos, pois o principal objetivo de sua criação é de servirem como reprodutores. Dessa forma, apenas alguns poucos são escolhidos, sendo o excedente sacrificado logo após o nascimento. O descarte de bezerros provenientes de rebanho leiteiro ocorre pelas seguintes razões: i) concorrem com as fêmeas por área, alimento e manejo; e ii) baixa remuneração do bezerro, quando comercializado para recria e terminação, devido ao pior acabamento da carcaça.”

Em resumo, a produção de leite submete à exploração e à morte violenta fêmeas, que vivem mais do que animais “de corte” mas sofrem mais e constantemente ao longo dessa vida, e mata filhotes, os quais mal começaram a viver e são mortos ou para virar vitela, ou para serem descartados como lixo. E existe maritalmente associada à produção de carne, para infelicidade dos protovegetarianos que acha(va)m estar boicotando bem-sucedidamente a indústria frigorífica.
A produção de ovos
Similarmente às mamíferas “leiteiras”, as galinhas e aves de outras espécies (como codornas e perus) têm uma vida tanto menos curta do que os seus irmãos de espécie “de corte” como mais sofrida e constantemente submetida à exploração e ao sofrimento.
Além disso, a produção de ovos, tal como a de leite, implica que as fêmeas e seus filhotes sejam descartados por via do abate. As “poedeiras” são abatidas por diversos motivos, também por meio do chamado “descarte involuntário”. Geralmente tem-se como pretexto a baixa produção de ovos – ou, como seus criadores dizem, “improdutividade”. Mas aspectos físicos também podem condená-las à morte, já que interferem severamente na “produtividade” da ave.
E assim como muitas vacas “leiteiras”, o abate das galinhas “poedeiras” também tem serventia à produção de carne. Esse artigo exemplifica como é possível elas serem abatidas para fins de fabricar produtos como caldos, sopas e nuggets. Exemplos de destinação da carne de “poedeiras” também são dados nesse artigo.
Quanto aos pintinhos, esse artigo publicado através da Universidade Federal do Espírito Santo afirma:

“No mundo, estima-se a existência de cinco bilhões de galinhas poedeiras que produzem anualmente de 50 milhões de toneladas de ovos. As novas raças produzem o dobro de ovos que as dos anos 50, cada galinha atualmente põe mais de 300 ovos por ano. Os pintinhos machos dessas poedeiras são, normalmente (sic), mortos após saírem da casca, pois não é considerado econômico criá-los para corte.”

Na maioria das vezes, o sangrento descarte de pintinhos se dá em massa, em máquinas que lhes trituram os pequenos corpos.
Em suma, a produção de ovos também é aliançada com a produção de carne e não é diferente da avicultura “de corte” em se tratando de não respeitar a vida de seus “criados”.
É perfeitamente possível dizer, considerando-se essa realidade, que a criação de animais para fins de produzir leite e ovos explora e mata tanto quanto os ramos pecuários encarregados de produzir carne. A exploração animal não poupa a vida de vacas, cabras, búfalas, ovelhas, galinhas, codornas fêmeas e outras fêmeas, nem a de seus filhotes saídos do útero ou do ovo.
Isso implica que o protovegetarianismo, destacando-se o ovolactovegetarianismo, não é mais isento de usufruir os frutos da miséria de animais não humanos do que os hábitos alimentares ricos em carnes. É hora, portanto, de você, caso ainda seja protovegetariano, rever ou a postura de não querer aderir ao veganismo, ou a demora de anos em transicionar para o mesmo. Da mesma maneira, as campanhas que exortam “Seja vegetariano!” (no sentido de abandonar o consumo especificamente de carne) precisam ser substituídas por aquelas que digam em alto e bom som “Seja vegan!”.

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